terça-feira, 20 de julho de 2010

Capítulo 11 - Confronto



Quem era Gabriela Machado? Por que Helene teria algum interesse em atormentar aquela garota? Perguntas como essas, e outras, muitas outras, corriam frenéticas pela minha mente. E a falta de respostas para todas elas, só me deixava mais angustiada. E como se não bastasse, eu acabara de descobrir que Alexandre também estava com Barbara na mesma noite em que a garota desapareceu, o que, apesar de não muito surpreendente, uma vez que todos sabiam dos passeios noturnos que Barbara e o namoradinho costumavam realizar para terem um pouco de privacidade na escuridão das escadarias da escola, ainda assim era uma revelação preocupante. Estaria Alexandre relacionado de alguma maneira com o desaparecimento de Barbara? "Claro que não!", eu pensava. Além de o astro da escola não ter, aparentemente, motivo nenhum para querer se livrar da namorada (além de ela ser uma vadia mimada, odiada por todos os outros alunos, inclusive por suas supostas amigas), Alexandre era burro demais para saber esconder um... cadáver? Tão bem assim. Não, ele nao tinha nada a ver com isso, talvez só estivesse chocado com o que aconteceu com a namorada, e claro, assustado com a possibilidade de ele se tornar um suspeito. Era como se muitas coisas estivessem acontecendo ao meu redor, rápido demais, e eu não conseguisse captar tudo, como se estivessem se escondendo de mim. Eu tinha que pôr um fim em todas as minhas dúvidas, de uma vez por todas. E eu começaria por Gabriela, ou melhor... por seu histórico escolar. E só havia uma pessoa naquela escola que poderia me ajudar a ter acesso a tal documento.
- Você enlouqueceu, menina!? - disse Olívia, séria, depois de ter ouvido um pedido meu, envolvendo o furto de um histórico escolar.
- Qualé, Liv!? Você sabe que consegue - eu insistia.
- Eu não vou fazer isso! Eu sei que não parece, mas eu amo o meu emprego, e não pretendo perdê-lo tão cedo. É o que alimenta o meu gato e a mim, muito obrigada, mas eu passo.
- É por uma boa causa, e você sabe disso.
- Eu não vejo no que isso pode ajudar em descobrir o que essa tal de Helene tá pretendendo...
- Confie em mim, Liv! Eu prometo que vai valer a pena - a verdade é que eu não fazia idéia do que estava prometendo, ou de como aquele histórico poderia me ajudar. Eu só sentia que precisava saber sobre as informações naquele documento.
Olívia ficou pensativa, por alguns segundos.
- Eu te dou uma cópia, hoje...
- Muito obrigada, Liv - eu disse, animada.
- Mas eu juro por Deus, sua esquisitinha... se eu me ferrar, você se ferra também, pode ter certeza - ela disse, em tom de brincadeira... ou não? Com a Olívia nunca se sabia.
- Eu não tenho nenhum emprego pra perder aqui, otária - comecei a correr em direção a saída da bilioteca, parando na porta - Eu passo aqui hoje no final da aula pra pegar, tudo bem!? TE AMO, LIV! - eu disse, me retirando.
Voltei correndo para o refeitório, esperando que Olavo e Janaína não tivessem se dado conta da minha demora. Eu não havia nem chegado à mesa onde os dois estavam, quando a sirene tocou, encerrando o intervalo.
- Droga! Perdi muito tempo arrumando o cabelo no banheiro - eu comentei, quando me aproximei dos dois, tentando despistar as suas perguntas a respeito da minha demora.
Como sempre, o tempo das aulas passou se arrastando, e eu não via a hora de sair correndo daquela sala para saber se Olívia conseguira fazer a cópia do histórico de Gabriela. Durante todas as aulas, eu pensei em uma desculpa para desviar o meu caminho do refeitório, sem levantar as suspeitas de Olavo e Janaína. Quando as aulas se encerraram, eu disse que precisava fazer uma ligação importante para a minha mãe. Os dois acreditaram, e continuaram o caminho para o refeitório sem mim. Eu corri para a biblioteca, tomando cuidado para não ser vista por ninguém que me fizesse voltar para o refeitório, onde todos os alunos do Lar deveriam estar, naquele horário. Chegando na bilioteca, Olívia já começara a arrumar a sua bolsa, pronta para encerrar mais um dia de trabalho como bibliotecária do Lar.
- Liv...
- QUE DROGA! - ela gritou, deixando a sua bolsa cair no chão - Meu Deus, Amallya! Bate na maldita porta, da próxima vez - ela disse, se recuperando do susto.
- Foi mal, eu não quis te assustar, juro... E aí? Cadê o histórico?
- Aqui - ela disse, me entregando duas folhas, com a primeira contendo uma foto 3x4 de Gabriela Machado, e com vários dados pessoais digitados por uma máquina de escrever.
Eu analisei, rapidamente, as informações contidas no documento, e como esperado, não consegui encontrar nada de muito surpreendente sobre a garota (era o seu histórico escolar, não o seu diário secreto, sua idiota!). Porém, um único nome contido no documento me prendeu a atenção, por algum motivo que até então eu não sabia explicar, eu simplesmente não consegui tirar o nome da mãe de Gabriela da minha cabeça, alguma coisa me dizia que era um detalhe importante, mas eu não sabia o por quê. Lúcia Machado... eu ficava repetindo esse nome, mentalmente, procurando a razão para o mesmo me intrigar tanto... até que, como um soco, ela me veio à mente.
- Lúcia Machado! - eu disse animada.
- Quem? - perguntou Olívia, confusa.
- Do anuário escolar!
- Anuário? Tá falando do quê, Amallya? - perguntou Olívia, começando a ficar preocupada.
- Lúcia Machado, eu já vi esse nome no anuário escolar de 1978, eu... tenho quase certeza disso... - eu disse, começando a correr em direção à seção de anuários.
- Amallya, aonde você vai? - perguntou Olívia, começando a me seguir.
Ao chegar na prateleira dos anuários, encontrei rapidamente aquele que eu procurava, e o abri na página em que vira a foto da turma inteira do primeiro ano ginasial de 1978. O nome Lúcia Machado estava entre os nomes na legenda. A garota da foto tinha um sorriso esnobe, e estava ao lado de uma outra garota, muito bonita, porém, com o mesmo ar esnobe. Então era isso... Não podia ser uma simples coincidência. Gabriela era filha de alguém que estudou com Helene, e provavelmente fez da sua vida um inferno, e agora a garota queria se vingar na filha da sua rival. Claro que era tudo uma suposição, mas não por muito tempo.
- Você tá com cara de quem descobriu algo muito importante, fala logo o que é! Eu ODEIO mistérios - disse Olívia, que reparara na minha empolgação ao segurar o anuário de 1978.
- Lúcia Machado é mãe de Gabriela...
- E dái?
- Se você me deixar...
- Tudo bem, tudo bem, me desculpa.
- Lúcia Machado e Helene estudaram juntas aqui no Lar, no ano de 1978, e vai saber por mais quanto tempo... Será que eu preciso dizer mais alguma coisa? - eu disse, encarando Olívia, que ainda parecia meio confusa.
- Você tá querendo dizer que Helene quer se vingar da mãe de Gabriela por algo que ela fez no passado... quando as duas estudaram juntas? -perguntou Olívia, mais esclarecida a respeito das minhas suspeitas.
- Parabéns, Sherlock Holmes!
- Tudo bem, já é alguma coisa...
- ALGUMA COISA? Se liga, Liv! Não é só alguma coisa, tá mais pra... a coisa, ou sei lá - eu disse, transbordando entusiasmo.
- São só suposições, Amallya, é isso que eu tô querendo dizer...
- Por enquanto... Mas eu e você conhecemos alguém que pode nos ajudar a tirar isso a limpo - eu disse, com um olhar insinuador.
- Anita - ela falou, em voz baixa.
- Você acha que ela falaria com a gente, agora?
- Não, eu acho melhor não... ela tá bem concentrada na leitura dos livros que você emprestou... vamos dar um tempo pra ela, você pode perguntar na segunda, ok!? - Sugeriu Olívia.
- Tem razão... - eu disse, um tanto desapontada. Mas Olívia estava certa, eu preferia esperar por mais um fim de semana para ter as respostas que eu tanto procurava, a correr o risco de perdê-las pra sempre.
- Agora vai descansar, você tá só a merda, ultimamente, sabia? Não tem dormido não, é garota? - perguntou Olívia, acariciando o meu rosto, rapidamente.
- Não muito - respondi, me dando conta do quanto eu realmente estava cansada.
- Já pra cama! Você já teve muito mistério pra um dia só - disse Olívia, me acompanhando até a saída.
- Liv... - eu parei na porta, e Olívia fez o mesmo.
- O que é, agora? - ela perguntou, um tanto impaciente.
- Posso te fazer uma pergunta... e por favor, não tenha medo de me assustar com a resposta - eu disse, implorando pela sinceridade de Olívia.
- Eu não vou te prometer nada - disse Olívia, desviando o seu olhar do meu.
- Só responde com sinceridade... Existe alguma maneira da Helene... machucar, ou... fazer algo pior com a Gabriela? - eu perguntei já começando a temer a resposta de Olívia.
Ela respirou fundo, e me encarou por alguns segundos, como se estivesse decidindo se mentiria ou não.
- Deus sabe como eu não queria te dizer isso, mas... existe sim - ela respondeu, séria.
- Como? - perguntei, ainda abalada pela resposta de Olívia.
- Agora não é o momento, meu anjo.Vai dormir, por favor... A gente se vê na segunda - ela disse, me conduzindo para o lado de fora da biblioteca, e trancando a porta por dentro, em seguida.
Eu fiquei em pé do lado de fora da biblioteca por alguns segundos, ainda pensando sobre a resposta de Olívia. "Então fantasmas podem machucar pessoas vivas!?", pensei. "Mas como?", por alguma razão, Olívia não quizera me responder aquela segunda pergunta. E para falar a veradade, eu não sabia se estava preparada para ouvi-la ainda, por isso agradeci Olívia por ter me poupado de tal revelação, naquele momento.
Presumindo que meus amigos não estivessem mais no refeitório, resolvi ir direto para o pátio frontal, onde, de fato, Olavo e Janaína já esperavam por seus pais. De longe, pude perceber que eles conversavam com uma mulher que parecia ter saído de uma dessas revistas com fotos de modelos tão perfeitas que nem parecem reais. Demorou um pouco até eu perceber que a linda mulher era a mãe de Janaína.
- Oi gente - eu disse, me encaixando entre Lavinho e Ína.
- Ah! Mamãe, lembra da Amallya? - perguntou Janaína, me aproximando da sua mãe, para que pudéssemos nos comprimentar.
- Claro que eu lembro... - ela disse, me abraçando, e me olhando meio perdida.
Ficamos em silêncio, até que eu resolvi salva-la daquele constrangimento.
- Eu... quebrei a sua galinha gigante de porcelana chinesa, quando tinha sete anos...? - eu disse, em uma tentativa ousada de fazer a mãe de Ína se lembrar de mim.
- Claro! Eu me lembro agora... E não era uma galinha gigante, era um pavão - ela disse, com um sorriso simpático, e visivelmente falso no rosto, uma vez que o seu olhar denunciava o seu desejo de me matar naquele exato momento.
Nós quatro rimos em unissono, tentando disfarçar a tensão do momento.
- Olha pelo lado bom, ele sempre ficou horrível na sua sala - eu disse, me dando conta, um tanto tarde demais, que só estava piorando a situação.
- Não, não ficava não - disse a mãe de Janaína, dessa vez sem o sorriso falso no rosto.
- Desculpa - eu disse, engolindo a seco.
Ficamos os quatro em silêncio, por alguns segundos.
- Bem... acho que a gente tem que ir, Janaína, querida - disse a mãe de Janaína.
- Foi um prazer, rever a senhora... - o nome da linda mulher me fugia naquele momento.
- Lorena, me chame de Lorena - ela disse, de forma um tanto arrogante, como que percebendo a minha angústia em não conseguir lembrar o nome da mãe da minha melhor amiga.
- Lorena, isso! - eu completei, resolvendo, a partir daquele momento, não abrir mais a minha boca.
- Tchausinho, perdedores - disse Ína, se despedindo, carinhosamente, de seus dois melhores amigos.
- Até mais, Teletubbie - disse Olavo, usando um apelido que ambos; eu, Olavo e Leonardo, havíamos dado a Janaína, quando ela começou a se queixar da sua cintura um tanto avantajada.
Eu caí na risada, sem conseguir me controlar.
- Essa foi maldade... idiota - disse Ína, apertando a própria cintura, fazendo uma falsa cara de mágoa, e se despedindo com um gesto obsceno envolvendo o dedo médio da sua mão direita.
- Você deveria se envergonhar, coisa feia - eu disse, em tom de brincadeira, fazendo Ína dar um último sorriso, antes de correr para acompanhar a sua mãe, que já se aproximava do carro, no lado de fora do colégio.
- Essa mulher me dá medo - disse Olavo, referindo-se a mãe de Janaína.
- Ela quase enfiou os cacos da galinha gigante dela na minha garganta, depois que viu a coisa estraçalhada no chão da sala de estar... Acho que eu fiz de propósito, lá no fundo eu sinto isso, sabe? Aquela coisa era horrível, tipo... algo que a minha avó colocaria na sala de estar dela, ou sei lá - eu disse, conseguindo arrancar uma risada de Olavo.
- Ela deveria ter agradecido, ao invés de ter usado a imaginação pra te assassinar, hoje... Aquele olhar que ela te lançou... sinistro - comentou Lavinho, mostrando que eu não fora a única pessoa a perceber a maneira que Lorena me olhara no momento em que eu me revelei como a assassina da sua galinha chinesa gigante e brega.
Eu me deitei no colo de Olavo, que pareceu um tanto desconfortável com a situação, mas eu não liguei muito pra isso, na hora. Só queria olhar as estrelas que começavam a surgir no céu daquela tarde de sexta-feira.
- Então... - começou Lavinho, um tanto sem jeito - o céu... tá lindo hoje, né?
- É... tá sim - eu respondi, ainda atordoada pela visão do céu tingido de rosa e azul, que começava a se encher de estrelas.
Ficamos em silêncio por alguns minutos. Cheguei a cair no sono, rapidamente, no confortável colo do meu melhor amigo, quando ele me despertou...
- Amallya...?
- Sim, Lavinho? - eu disse, um pouco atordoada.
- Eu...
- OLAVO!? - gritou o pai de Olavo, me fazendo levantar do seu colo, como um foguete.
- JÁ VAI, PAI! - disse Lavinho, aparentemente irritado com a maneira como o seu pai chamara a sua atenção.
- Me desculpa, Olavo... - eu disse, sem saber ao certo do que eu estava me desculpando.
- Não tem de quê, maluca - disse Olavo, beijando o meu rosto carinhosamente, antes de começar a correr em direção ao seu pai, quem parecia estar puto da vida.
E lá estava a pobre Amallya Caroline, mais uma vez... sozinha. Não que eu já não estivesse acostumada com a solidão das noites de sexta-feira, mas desde o dia em que Helene decidira visitar o dormitório feminino no meio da madrugada, as minhas noites sem a companhia de Janaína, tornaram-se muito menos suportáveis. Mas a noite chegara, e eu estava tão cansada que cheguei a ter a esperança de que a minha desesperada necessidade de dormir, afastaria o meu medo, recentemente adquirido, de fechar os olhos naquele dormitório. E foi com essa frágil esperança que eu fechei os meus olhos, confortavelmente deitada em minha cama, no solitário dormitório. Naquela noite haviam, além de mim, quatro garotas ocupando o enorme aposento, entre elas estava Gabriela Machado, que desde a nossa última conversa no banheiro feminino, parecia extremamente reservada, e desconfiada. Mas eu não queria pensar em Gabriela, em Helene, ou no passado que ela e a mãe de Gabriela, Lúcia Machado, tiveram juntas no Lar, na verdade, tudo que eu mais desejava naquele momento era fechar os olhos e conseguir não pensar em NADA. E eu até consegui... Não por muito tempo, mas eu consegui.
Com os olhos fechados, eu me deixei afundar na aconchegante escuridão do nada... Até que um grito muito familiar me puxou, violentamente, de volta para a minha conturbada realidade. Os gritos ecoavam de forma perturbadora pelo dormitório, devido à pouca quantidade de pessoas que ocupavam o lugar naquele dia.
- SOCORROOOO! ALGUÉM... FAÇA PARAAAAR! POR FAVOR! FAÇA ELA PARAAAR! - gritava Gabriela, repetidas vezes.
Logo os gritos de Gabriela se misturaram com os gritos de pavor das outras meninas, que não ousavam chegar perto da pobre garota, e para ser honesta, eu também demorei bastante para conseguir ter coragem de me aproximar de Gabriela. A primeira impressão que eu tive ao me aproximar da sua cama, era a de que a garota estava tendo tendo um pesadelo, seus olhos estavam firmemente fechados... Mas um simples pesadelo não podia estar causando toda aquela agonia em alguém.
Gabriela se agitava na cama, como se estivesse sendo queimada em uma fogueira... como se algo, invisível, a estivesse machucando seriamente. Os gritos pioravam com o passar do tempo, durante alguns minutos ninguém apareceu para socorrer a garota que, aparentemente, agonizava de dor. Eu era a única no dormitório que estava fora da cama, as outras meninas não faziam nada além de gritar e de me alertar para manter distância. Em passos cautelosos, eu as desobedecia, me aproximando mais da cama de Gabriela.
- ME DEIXA EM PAAAZ! POR FAVOOOR! - ela gritava, apavorada e inquieta.
Eu podia imaginar quem (ou seria o quê?) estava provocando aquela tortura na garota, mas não fazia sentido, uma vez que eu não sentira nenhuma presença.
- Gabriela!? - eu disse, tomando coragem para tocar a garota.
- FAÇA PARAR... POR FAVOR... FAÇA... PARAAAAR! - ela gritava mais e mais, a medida em que eu ia me aproximando.
Eu toquei o seu ombro, tentando acalma-la, e o frio da sua pele me fez recuar. No entanto, ela respirou fundo, fazendo um estranho som gutural com a boca, parando de gritar e abrindo os olhos rapidamente, como se, de fato, tivesse acordando de um pesadelo. Ela respirava ofegante, parecendo atordoada, e lágrimas desciam de seus olhos, descontroladas. Sua roupa e cama estavam encharcadas de suor.
- Você está bem? - eu perguntei, um pouco abalada por sua reação ao meu toque.
- Obrigada - ela disse, quase sussurrando, sem me olhar nos olhos.
- O quê?... - foi tudo o que eu pude falar, antes que a madre superiora me empurra-se devagar, para poder ver o que acontecia com Gabriela.
- O que houve, meu anjo? - perguntou Amélia, acariciando o rosto de Gabriela.
- Eu... - ela olhou para mim, como se esperasse que eu dissesse alguma coisa - tive um pesadelo - ela finalizou, direcionando o seu olhar para a madre superiora.
- Padre Jonas? - chamou a madre superiora, fazendo com que o padre Jonas irrompesse da multidão de garotas, aproximando-se da cama de Gabriela.
- Amélia? - disse Jonas, assustado ao se deparar com a situação de Gabriela.
- Vamos leva-la para a enfermaria... - começou Amélia.
- Não, madre, por favor... foi... só um sonho, eu juro, não estou me sentindo mal... - disse Gabriela.
- Como não, minha filha? Você está encharcada de suor e... - começou o padre Jonas, sendo interrompido por Gabriela.
- Isso é o que acontece quando se tem um pesadelo muito intenso, padre Jonas. Eu estou bem, acredite em mim - ela disse, ignorando as pessoas a sua volta, voltando a deitar-se, enrolada em seu cobertor, como se nada tivesse acontecido.
Um tanto desconfiada, a madre superiora afastou-se da cama com o padre Jonas.
- Todas vocês, por favor, voltem para suas camas - disse a madre superiora, calmamente.
Ainda eufóricas, todas as meninas obedeceram a madre superiora, que se retirava do dormitório, acompanhada pelo padre Jonas. Eu olhei uma última vez para Gabriela, totalmente escondida debaixo de seu cobertor, e pensei se Helene teria sido a culpada pelo "pesadelo" que a garota acabara de ter. O "obrigada" de Gabriela também não me saia da cabeça. Afinal, o que eu teria feito, para que ela me agradecesse daquela maneira? Como se eu a tivesse salvo de despencar em um abismo, ou algo do tipo. Eu voltei para a minha cama, somente para me dar conta de que perdera o sono completamente.
Os gritos de Gabriela me assombraram durante a noite inteira, e como é possível imaginar; eu não consegui dormir. Somente quando eu fui "despertada" pela voz da madre superiora, eu pude sentir o peso da péssima noite que eu tivera, sobre os meus olhos, que teimavam em permanecerem fechados. Quando eu acordei no outro dia, Gabriela já não estava mais na sua cama, imaginei, meio atordoada pelo insistente sono, que a sua mãe tivesse sido informada a respeito do que acontecera com a filha e por isso passou mais cedo na escola.
No chuveiro, onde eu pude pensar melhor com a água gelada me ajudando a despertar aos poucos, eu pensei em relatar a Olívia o ocorrido no dormitório, e saber se haveria alguma possibilidade da Helene ter sido a causadora do que quer que tenha acontecido com Gabriela.

Eu pude desviar o meu caminho do refeitório (já havia me tornado expert nesse tipo de coisa), e ir direto para a biblioteca, onde, para a minha sorte, Olívia realizava a sua faxina de sábado, quando ela tirava a poeira das estantes e dos livros (bem... não de todos os livros, é claro).
A porta da biblioteca estava trancada, então eu bati delicadamente no vidro, para chamar a atenção de Liv, que parecia muito concentrada, tirando a poeira de uma das estantes da sessão infanto-juvenil. Ela usava uma calça jeans rasgada nos joelhos, uma blusa velhinha com uma foto da Rita Lee estampada, e sandálias.
Ela abriu a porta para mim, parecendo um pouco aborrecida.
- O que é agora, Carol!?
- Eu preciso falar com você, é muito importante... eu juro.
- Entra logo! - ela disse, me chamando para dentro da biblioteca, que cheirava a produtos de limpeza naquele dia.
- Aconteceu um lance muito sinistro com a Gabriela, tipo... não sinistro, sinistro, mas sinistro tipo... O EXORCISTA, sacou? O filme? Não? Tudo bem... a questão é que... eu acho que a Helene foi a culpada, você presecisava ter visto, Liv, foi... quer dizer, eu...
- CALMA, Carol! - disse Olívia, pressionando o meu ombro, no intuito de me acalmar - Respira, e me conta tudo de novo, e dessa vez na minha lingua, ok!?
- Tá bom, me desculpa, é que... No meio da noite, eu acordei com os gritos da Gabriela, e... ela parecia muito estranha, e agonizava na cama como se algo estivesse machucando ela pra valer, sabe? Eu... eu não sabia o que fazer, as outras garotas não paravam de gritar, como ela não abria os olhos eu... eu pensei que ela estivesse sonhando, ou sei lá... então eu me aproximei e... toquei ela, sabe? Pra acordar ela, e... e ela acordou... e me agradeceu... Diz aí se não foi estranho!? AAAH! E, eu quase esqueci, a pele dela... quando eu a toquei... tava muito fria, fria mesmo, sabe? - eu finalizei, esperando uma reação de total espanto, por parte de Olívia. Mas tudo o que ela fez foi me olhar intrigada, e começar a roer as unhas da mão direita, enquanto caminhava em circulos pela biblioteca.
- Que droga, QUE DROGA! - ela disse, parecendo irritada e muito preocupada, ao mesmo tempo.
- O quê? - perguntei, ainda mais precocupada.
- Eu sabia que era roubada trabalhar em um colégio com mais de cem anos de existência! Mas eu NUNCA me escuto! NUNCA! Vai lá, Olívia, aceita o trabalho, vai! Você tá em dívida com São Paulo INTEIRA! Quer acabar levando um tiro de algum traficante em uma moto?... - dizia Olívia, falando com ela mesma, ignorando totalmente a minha presença. Ela tirou um cigarro e um isqueiro do bolso da calça, e o acendeu na minha frente.
- Liv, o que tá acontecendo? - eu perguntei, começando a entrar em pânico também.
Olívia deu uma longa tragada no seu cigarro, libertou uma nuvem de fumaça da boca, direto na minha cara, respirou fundo e me olhou apreensiva, novamente aparentando estar decidindo se mentiria ou não para mim.
- Lembra quando você me perguntou se um fantasma poderia machucar alguém?
- Claro que lembro, isso foi ontem, Liv.
- Eu te disse que sim, mas não te falei como.
- Exato.
- Pois bem... Eu não sei se eu deveria te falar isso, mas... Acho que você tem o direito de saber, afinal, essa fantasma parece mesmo estar querendo chamar a sua atenção, e é melhor que você esteja alerta sobre tudo que ela possa tentar fazer contra você ou... contra qualquer um aqui nesta escola... - ela deu uma outra tragada do seu cigarro, e voltou a me olhar fundo nos olhos - Você sabe que fantasmas podem... tomar o corpo de certas pessoas, não é, Carol?
Aquela pergunta me pegara despreparada, mas eu deveria ter pensado nisso antes, era óbvio demais. De que outra maneira um fantasma faria mal a pessoas vivas, se não tomando o corpo delas, ferindo-as de várias maneiras, por dentro?
- Eu... posso já ter ouvido falar - eu disse, ainda assustada com a idéia.
- Bem... isso só acontece com pessoas que possuem muita, ou um pouco, de mediunidade, isto é... que são... elos, como nós, que possuem alguma conexão com o além, ou sei lá... Se o que aconteceu ontem com a sua colega tiver sido, de fato, uma tentativa da Helene tomar o seu corpo, então... eu estava errada e essa Gabriela pode sim ser um elo, mas não um como nós.
- Como assim? Existem vários tipos de elos?
- Mais ou menos... eu diria que existem aqueles que somente recebem espíritos, isto é, que estão totalmente suacetíveis a eles, e existem aqueles que podem fazê-los voltar para onde nunca deveriam ter saído. Eu e você nos encaixaríamos melhor nesse último grupo.
- Eu?... Eu seria capaz de fazer a Helene sumir daqui, definitivamente? -perguntei empolgada.
- Não exatamente... Você disse que só precisou tocar na Gabriela e então ela voltou ao normal, certo?
- Sim.
- Certo. Agora vamos supôr que a Helene estava, de fato, quase conseguindo possuir o corpo de Gabriela... Fantasmas como a Helene, que não pretendem voltar tão cedo para "o outro lado", não suportam o toque de um elo, eles podem sentir o nosso poder, e por isso sentem medo de nós...
- Isso não faz sentido... - eu disse, interrompendo a explicação de Olívia.
- E... eu posso saber a razão? - perguntou Olívia, parecendo um pouco irritada por estar sendo contrariada.
- Eu já... toquei o Léo, várias vezes... e nunca mandei ele de volta pra nenhum lugar - respondi, me sentindo desiludida pela possibilidade da teoria de Olívia estar errada.
- Claro que não funcionaria com o Léo, sua idiota! - disse Olívia, de forma um tanto arrogante - Entenda uma coisa... Existe uma ENORME diferença entre a Helene e o Léo, e principalmente... existe uma enorme diferença entre os sentimentos que os prendem à esta vida... Porra! Você... você estava com ele no momento em que ele morreu, você, a garota que ele mais amou na vida, foi a última pessoa que ele viu antes de morrer, o amor que vocês sentem um pelo outro é o que, provavelmente, mantém ele no nosso "plano", ele não está aqui por querer se vingar, ou coisa do tipo, não são sentimentos ruins que o prendem aqui, Carol... ele é um espírito ligado a esse plano de forma pacífica, e talvez nem saiba disso...
- Ele disse algo parecido, na noite em que apareceu pra mim pela primeira vez... eu perguntei como era possível ele estar ali na minha frente, e ele respondeu que não fazia idéia - eu disse, me lembrando com alegria, daquela noite.
- Tá vendo só!? Agora, por outro lado... o que mantém Helene aqui é algo horrível, possivelmente, uma obsessão por vingança, muito poderosa, portanto, ela está presa à esse mundo por livre e espontâneo ódio, e não pretende voltar para o outro lado tão cedo... Espíritos como ela são muito perigosos, e odeiam os elos e o seu poder.
- Como um elo pode mandar um espírito "vazar"? - perguntei, esperançosa.
- Calma aí, garotinha! Isso não é algo para alguém como você se quer PENSAR em fazer... pelo menos não agora - disse Olívia, em tom de alerta.
- Por que não? - perguntei, decepcionada.
- Porque é extremamente perigoso, e fim de ato! - disse Olívia, tentando encerrar a conversa ali mesmo.
- Mas...
- Sem porra de "mas", eu odeio "mas", assim como odeio "e se", ou... "porém", sacou!? - ela disse, começando a me dar as costas.
- Então a gente vai simplemsmente deixar que essa Helene tente... POSSUIR a Gabriela novamente? É isso? - perguntei, revoltada.
- Claro que não, mas não cabe mais a você protegê-la, isso tá se tornando muito perigoso, e eu não tô brincando, Carol! - ela disse, e a seriedade de Olívia me assustou. Na verdade, ver a Olívia séria sempre me assustava - Agora vá pra casa, e segunda feira, NÓS DUAS, teremos uma conversinha com a Anita sobre... você sabe quem, e os seus possíveis interesses na Gabriela ou em você, e então a sua participação neste caso estará ENCERRADA, eu fui clara o suficiente, mocinha? - perguntou Olívia, me encarando de forma intimidadora.
- Mas você não pode...
- Ei! O que eu te falei sobre o "mas", Amallya!? - disse Olívia, como uma advertência, começando a me arrastar para fora da biblioteca - Tenha um ótimo fim de semana, tente fazer o que meninas normais fazem; Saia pra uma noitada, ou... vá ao cabeleireiro - ela disse, fechando a porta da biblioteca na minha cara, trancando-a em seguida.
"Mas que porra", pensei, enquanto começava a caminhar de volta ao refeitório, onde a minha mãe me esperava, provavelmente, puta da vida, não que isso fosse uma novidade. Novidade seria se ela não estivesse puta da vida, e foi exatamente o que aconteceu naquele dia, a minha mãe estava chorando, disfarçadamente, sentada em uma das mesas do refeitório, enquanto me esperava.
- Mãe? O que houve? - perguntei, me aproximando devagar.
- O quê? Carol! - ela disse, enxugando as lágrimas do rosto, tentando esconder que estava chorando - Você demorou, mocinha.
- Por que a senhora tá chorando, mãe? - perguntei, preocupada.
- Chorando? Você tá louca, não, eu... eu não tô... (soluço) chorando - ela disse, não convencendo nem a si mesma.
- Fala logo, dona Olga - eu disse, sabendo que ela ia começar a desabafar. Ela sempre adorou falar dela mesma, não importava a quem.
- O desgraçado do seu... pai... ele ligou pra mim hoje de manhã, aquele filho da...
- Mãe! - eu disse, impedindo ela de terminar a frase.
- Ele veio me dizer que, depois de dois meses sem nem se lembrar de você, ele finalmente quer passar um fim de semana com a filhinha, dá pra acreditar nisso? - ela disse, recomeçando a chorar.
- Desgraçado... - eu sussurrei - Eu não vou! A minha vontade significa alguma coisa nessa porra de divórcio, não é mesmo? E eu não estou nem um pouco a fim de ir! - eu disse, realmente revoltada com a atitude do meu pai.
A total ausência do meu pai na minha vida, não me permitiu conhecê-lo muito bem, por isso eu não vou perder tempo tentando descrevê-lo, até porque isso seria impossível. Afinal, como é possível falar de alguém que você mal conhece? Mas eu também não quero ser injusta com o velho, por isso eu tenho que admitir... eu conheci pais infinitamente piores que ele.
- Bem... você terá que dizer isso pra ele, querida. O idiota jura que EU estou fazendo a sua cabeça pra não querer ir passar os finais de semana com ele - disse Olga, exugando as novas lágrimas do rosto, e começando a caminhar em direção à saída do refeitório - ele disse que ligaria mais tarde, e só falaria com você.
- Ótimo, eu vou deixar bem claro o quanto eu não gostei de ter sido ignorada por ele, durante dois meses inteiros - eu disse, acompanhando-a.
Quando nós chegamos ao pátio frontal, eu ainda pensava no meu pai, e ensaiava uma maneira de fazê-lo se arrepender de ter ignorado a minha existência durante tanto tempo, e ainda pôr a culpa da nossa falta de contato, na minha mãe. "Que covarde, cara de pau! Nem pra assumir a própria culpa!?", eu pensava, enquanto lutava contra a vontade de chorar. "Ele vai ficar com a consciência tão pesada, que vai se lembrar de mim até quando estiver trasando com alguma vagabunda de buteco que ele tenha conhecido... - AAAI! Mas que... merda! - eu disse, quando a minha linha de pensamento foi totalmente interrompida por uma pedra no meio do meu caminho, que me fez tombar no gramado do pátio central, muito próxima a estátua do Espírito santo.
Ainda no chão, eu olhei para frente e vi que a minha mãe, como sempre, continuava andando em direção ao carro como se ela estivesse deixando o Lar sozinha. Eu levantei o mais rápido que pude, tirando a grama da minha roupa, quando olhei em direção ao bosque que abrigava a igreja da escola, e parada entre as arvores estava Helene, que novamente viera para se despedir. Eu fui tomada por uma raiva inexplicável, e sem me dar conta do que estava fazendo, comecei a caminhar, quase correr, em direção a Helene, que na mesma hora, começou a andar em direção oposta, adentrando o coração do bosque. "aaah, você não vai fugir de mim!", eu pensei, enquanto seguia Helene, sem nem lembrar da mãe esperando no carro.
Eu caminhei para dentro do bosque, até perceber que Helene havia sumido de vista. Não havia nenhum som, além do canto dos passaros, e o chacoalhar dos galhos e folhas das arvores. Eu olhei em todas as direções possíveis, mas não vi nada nem ninguém. Eu não sei se foi o medo, ou a minha revolta momentânea, mas eu estava decidida à confrontar Helene.
- APAREÇA! - eu comecei a gritar no meio das arvores - APAREÇA, SUA COVARDE! EU ESTOU BEM AQUI! POR QUE VOCÊ NÃO EXPERIMENTA BRINCAR COM ALGUÉM COMO EU AO INVÉS DE INFERNIZAR ALGUÉM INDEFESO, HEIN!? - eu estava com medo, mas lutava com toda a minha força para não transparecer isso.
Logo nem os passaros faziam barulho, o bosque estava perfeitamente silencioso. De repente, o frio... Eu podia sentir como se Helene estivesse prestes a me tocar pelas costas. Eu me virei, impulsivamente, e me esforcei para não gritar ao me dar de cara com a imagem da estranha garota. Ela nunca estivera tão perto de mim. Seus olhos olhos verdes pareciam penetrar a minha alma de alguma forma, havia algo intenso neles, algo que já me assustava antes, mas que naquele momento me atingira como nunca. Então eu relembrei o que Olívia me dissera na biblioteca, sobre os sentimentos que aprisionavam os espíritos no mundo dos vivos... e eu pude ver, nos olhos de Helene, o ódio que a aprisionava aqui.
- Eu sei o que você pretende... - eu comecei, fazendo o possível para não demonstrar o quanto eu estava com medo - e eu juro... você vai ter que me matar pra conseguir o que quer... se afasta da Gabriela... eu não vou avisar de novo - eu disse, encarando-a da maneira mais intimidadora que eu pude encenar.
Ela não respondeu nada, nem fez nada. Só ficou me encarando, com o sorriso no rosto aumentando quase que imperceptivelmente, na medida em que eu a ameaçava. Talvez tenhamos ficado cerca de dois minutos nos encarando, até o silêncio no bosque ser quebrado pelo chamado da minha mãe.
- AMALLYA!? - gritou Olga, parecendo preocupada.
Eu olhei rapidamente em direção ao lugar de onde a minha mãe me chamara, e quando voltei o meu olhar para Helene, ela havia sumido. Eu não pude segurar as minhas lágrimas. "Que droga! Sua covarde, fraca! PARA DE CHORAR!", eu pensava, enquanto surrava a minhas próprias pernas, como protesto. Eu respirei fundo, e caminhei em direção a saída do bosque, sem ter coragem de olhar para trás uma única vez.

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