sábado, 5 de junho de 2010

Capítulo 9 - Anita


Era manhã de domingo, o relógio digital ao lado da minha cama marcava 8 horas em ponto. Eu passara o dia anterior na minha cama, conversando baixinho com Leonardo, saindo do meu quarto apenas para pegar algo para comer, retornando para a minha cama, em seguida. Dona Olga quase não parara em casa, por isso não me interrogou sobre o meu enclausuramento, e talvez, mesmo se tivesse passado o dia inteiro em casa, não tivesse percebido. Ela nunca foi esse tipo de mãe, só queria saber sobre as minhas notas na escola, e se o Olavo andava me oferecendo drogas. Na verdade, ela já tivera uma conversa muito séria com ele sobre esse assunto, no ano passado, quando Olavo apareceu lá em casa, depois de ter usado maconha, dizendo para a minha mãe que estava perdidamente apaixonado por mim, enquanto eu morria de rir da situação, e pedia para ela pegar leve com ele, quem NUNCA me oferecera um único cigarro de nada.
Quando eu me levantei da cama, e esfreguei os olhos com força, me assustei ligeiramente com a presença de Leonardo, sentado no chão, olhando diretamente para mim.
- Bom dia - ele falou, sorrindo.
- Bom dia - respondi, me espreguiçando.
- Sua mãe acabou de sair... pra comprar pães, eu acho.
- Eu acho que pra comprar cigarros é mais o jeito dela - eu disse, enquanto arrumava a minha cama.
Nós dois ficamos em silêncio, enquanto eu estirava a colcha da cama, e ajeita os travesseiros. Quando terminei, me virei para ele, que me olhava como se estivesse em transe.
- Para com isso - eu disse, envergonhada.
- Parar com o quê? - ele perguntou, sorrindo maliciosamente, sabendo exatamente do que eu estava falando.
- Com isso, com esse olhar, eu fico envergonhada.
- Eu sei, mas eu não posso evitar... - ele se levantou, aproximando-se de mim - Você é tão linda... Não pode me pedir pra parar de te admirar, é impossível...
Ele me beijou, leve e rapidamente.
- Posso perguntar uma coisa? - ele disse, um tanto receoso.
- Pode... eu acho - respondi, ansiosa.
- Naquele dia em que a gente tava ouvindo Kid Abelha no carro da sua mãe... você tava louca pra me dar, não tava?
A minha vontade era de dar um tapa na cara dele, o que não seria possível. Eu o encarei séria, e disse...
- Você é um porco, sabia!? Nem depois de morto você toma jeito, Léo!? - eu disse, realmente enraivecida.
- Isso quer dizer um sim? - ele perguntou, o sorriso sacana estampado na cara dele. Deus! Eu amava aquele sorriso, mas nunca deixei o Léo perceber isso.
- Não, eu NUNCA pensei em dar pra você, Leonardo...
- Mas você me deixou pegar nos seus peitos... até a sua mãe aparecer na janela do carro, puta da vida - ele riu, e eu me esforcei, em vão, para não rir daquela lembrança, também.
- Cala a boca... (risadas) Seu escroto! Eu deixei, mas isso não quer dizer que eu queria te dar.
A porta do meu quarto abriu bruscamente, me fazendo perder o ar, e minha mãe surgiu do corredor, com um cigarro na boca e uma sacola de pães na mão direita. Ela me encarou, visivelmente preocupada, por alguns segundos, e então disse...
- Você tava falando sozinha?
- Não... Claro que não! Que idéia, mãe! - respondi, me sentindo mal por estar mentindo daquele jeito para a minha mãe.
Na minha frente, Leonardo ria de toda a situação, o que não me ajudava a ficar mais confortável.
- Eu podia jurar que... Você... quer que eu te asse alguns pães? -ela perguntou, um tanto confusa.
- Você... bateu com a cabeça em algum lugar?
- Não abusa, Amallya... - Olga me alertou, retirando-se, e fechando a porta do quarto com força.
- Essa foi por pouco... - disse Léo, ainda rindo - Mas então...? Você não me respondeu ainda...
- Na boa... Vai se fuder, Léo! - eu disse, tirando a minha camisola, ficando apenas de calcinha na frente dele, que me encarava de boca aberta.
Eu sorri para ele, maliciosamente, e caminhei provocante em direção ao banheiro.
- Isso é muita maldade, sabia!? - ele disse, revoltado.

Eu nem sentira aquele dia passar. Sentada na cama, assistindo televisão, ou mesmo adimirando o fantasma deitado preguiçosamente ao meu lado. As horas se tornaram minutos, e quando eu menos esperava, já passava das três da manhã. Só teria direito à três horas de sono, antes que a minha mãe entrasse no quarto, anunciando aos berros que eu iria me atrasar para a escola. E três horas depois, foi exatamente o que aconteceu.
- Acorda, Amallya! Você vai se atrasar pra porra da escola DE NOVO, e quem vai ter que dar justificativa sou eu! Imagino que você esteja muito satisfeita com isso, não!? Garota ingrata... - disse Olga, fechando a porta do quarto com uma força desnecessásia, ao sair.
Depois de acordada pela voz da minha adorável mãe, eu virei o rosto e encontrei Leonardo, deitado ao meu lado, me encarando docemente.
- Eu sempre admirei a simpatia da sua mãe - ele disse, de maneira sarcástica.
- Ela é um doce, eu tenho a quem puxar, não acha?... - eu disse, tentando tomar coragem para me levantar... Mas olhar para Leonardo, sabendo que eu estava prestes a ter que me despedir dele por mais uma semana, praticamente me prendia naquela cama - Eu não quero ir... - eu disse, quase sussurrando.
- Você tem que ir... Mas pode ter certeza, quando você voltar... - ele beijou os meus lábios, levemente - eu vou estar te esperando.
Depois de ter tomado banho, e vestido a farda, eu comecei a arrumar o meu material, e sem me dar conta da presença de Leonardo, enfiei todos os exemplares de Harry Potter na minha mochila, pensando em usa-los como isca para conquisatr a amizade de Anita, minha única, e morta, fonte de informação sobre Helene.
- Qualé a do Harry Potter? - perguntou Léo, curioso.
- O quê? - perguntei, atordoada.
- Os livros... pra quê você tá levando a sua coleção do Harry Potter?
- Ah! Os livros, eu... Vou emprestar pra Olívia... Ela é muito fã, então... - respondi, tentando parecer convincente.
- Sei... Não sabia que ela gostava de Harry Potter - comentou, Léo.
- E como você saberia? Nunca foi à biblioteca, exceto quando era obrigado pela professora de Literatura - eu dei uma risadinha, quando no mesmo instante fui atacada por lembranças deliciosas de um tempo que jamais voltaria. Eu, Leonardo, Olavo, e Janaína, dividindo uma das mesas da biblioteca, e rindo de palavras difíceis, encontradas em um livro de Machado de Assis, que líamos, ou tantávamos ler, juntos. Dom Casmurro, se não me engano.
- Queria namorar alguém culto? O Nievy tava disponível - ele disse, sarcasticamente.
- Não... ele tinha aquela péssima mania de vomitar o café da manhã na sala de aula, lembra? Além do mais... - me aproximei dele, devagar - o que uma pobre garota como eu pode fazer?... Se só os garotos que não valem nada a atraem? - dessa vez, eu o beijei levemente. Ele sorria, enquanto me beijava.
- Pra minha sorte, você sempre teve um péssimo gosto - ele disse, sorridente.
- NÃO FODE COMIGO, AMALLYA! DESCE LOGO DESSE QUARTO! - gritou a minha mãe, do andar de baixo.
- Eu vou sentir saudades - eu disse, dando as costas para Leonardo, e começando a sair do meu quarto.
Não queria prolongar a despedida, só seria mais doloroso. "É só uma semana, sua chorona!", você pode estar pensando. Eu sabia disso, e ainda assim, era doloroso. A sensação de que eu chegaria no meu quarto no sábado de manhã e não encontraria o Leonardo, simplesmente não me abandonava.

- É impressão minha ou... o céu tá cinza pra caralho!? - comentou Olavo, obviamente chapado. Ele costumava fumar um cigarro de maconha antes de ir a escola, caso as coisas estivessem difíceis em sua casa. Mais cedo, os pais dele brigaram, e a razão fora o chão molhado do banheiro, depois que o pai de Olavo tomou banho. Talvez eles não soubessem, ou simplesmente ignorassem, que o grande culpado pelo estado de auto-destruição em que o meu melhor amigo se encontrava, era o casamento deles.
- Não, Lavinho... não é impressão sua, o céu, de fato, está nublado - eu disse, abraçando-o forte.
- E você, de fato, está doidão - brincou Janaína.
Nós três estávamos sentados sob a sombra da estátua do espírito santo, esperando o sinal tocar.
Eu sentia as primeiras gostas da chuva tocarem o meu rosto, enquanto Olavo parecia dormir no meu ombro. Foi quando a estranha Gabriela passou correndo por mim. Eu a acompanhei com o olhar, pensando na tarefa que Olívia me dera. "Mas como?", eu pensava, "Como eu vou me aproximar dessa garota?".
O sinal tocou, e aos poucos o pátio frontal foi se esvaziando. Na entrada da escola, haviam dois polícias que vigiavam a entrada dos alunos. Foi impossível não me sentir uma presidiária quando eu reparei ambos tocando os seus revolveres, como se estivessem esperando que algum aluno surtasse e começasse a esfaquear os colegas.
Ao pé da escada que nos levava ao primeiro andar, a madre superiora observava, visivelmente preocupada e cansada, os alunos subirem em fila. A situação no Lar não havia mudado nenhum pouco. O corpo de Barbara não fora encontrado, todos sabiam disso, assim como todos sabiam o que aconteceria caso ele não fosse encontrado logo. O Lar era um colégio de tradição e renome, mas não sobreviveria à um caso de assassinato não solucionado, envolvendo uma aluna como vítima.

- Abre o jogo, Amallya! - começou Janaína, irritada - Qualé a sua com a Olívia, hein!? Antes você pouco botava os pés naquela biblioteca, agora você praticamente trabalha lá...
- Eu já disse, Ína, eu preciso de um livro...
- Meu cu, que você precisa de um livro! Você tá de segredinho com a Olívia, e tá escondendo o jogo de mim e do Olavo, que, até onde eu me lembro, somos os seus melhores amigos.
- Olha... você tem razão... eu não quero mentir pra vocês... Mas eu preciso que entendam uma coisa... eu não posso contar nada ainda...
- Ah, então é verdade!? - ela tava ficando mais estressada, e isso não era nada bom. Eu devia ter mentido de novo.
- Eu prometo que eu vou contar, pra vocês dois... na hora certa.
- E quando vai ser isso? - perguntou Olavo, finalmente se intrometendo na conversa.
- Em breve, eu prometo... Se eu contar agora... vocês vão achar que eu tô louca, ou sei lá...
Janaína estava pronta para rebater, quando Lavinho tomou a frente, acalmando-a, e falou...
- Olha... conta pra gente quando você tiver preparada, e... como seus amigos, a gente espera o tempo que for preciso, né Ína? - ele olhou fixamente para Janaína, esperando a sua compreensão.
- É... eu acho que sim - ela disse, visivelmente desconfortável em concordar com aquilo.
- Obrigada, gente - eu disse, dando um abraço forte nos dois, correndo para a bilioteca, em seguida, carregando com dificuldade os exemplares de Harry Potter.
Era hora do intervalo, e os alunos andavam agitados pelos corredores da escola, conversando em grupos, a maioria sobre o desaparecimento de Barbara, sobre o quanto os polícias espalhados pelo colégio eram bonitinhos, sobre as armas que carregavam, as fardas que usavam, ou mesmo sobre as inúmeras utilidades de uma algema.
Eu entrei na biblioteca, e corri em direção ao birô de Olívia, que registrava alguns empréstimos de livros.
- Oi, quatro-olhos - eu disse, tentando chamar a atenção dela.
- Trouxe os livros? - ela perguntou, imediatamente.
- Sim.
- Ótimo, agora vá até o coredor de literatura clássica, devagar, e faça alguma coisa útil pela primeira vez vez em toda a sua vida.
- Eu também te amo - respondi., começando a me retirar, quando Olívia chamou a minha atenção, novamente...
- E Carol...
- Sim.
- Não estrague tudo... essa pode ser a sua única chance. Se a Anita ficar assustada, ela pode fugir de você por toda a eternidade, e nem eu, nem você queremos isso, não é? -ela perguntou séria.
- Sim... quer dizer... NÃO! Não queremos.
- Perfeito, agora vá, e... Boa sorte - ela disse, sorridente.
Eu recomecei a andar em direção à ala de literatura clássica. Para a minha sorte, a biblioteca estava calma, naquele dia, haviam somente dois grupos de alunos que ocupavam duas das mesas no lugar. Chegando na ala indicada por Olívia, eu dei uma espiada no corredor. E lá estava Anita, sentada no chão, escorada em uma das estantes de madeira, lendo um livro tão grosso que poderia facilmente matar uma pessoa, se usado da maneira certa. Foi inevitável não me lembrar do pesadelo que eu tivera alguns dias atrás, envolvendo Helene, uma faca de cozinha ensanguentada, Anita, e a biblioteca, ou uma versão assustadora dela.
Respirei fundo e comecei a me aproximar de Anita, que só percebeu a minha presença quando eu lhe chamei a atenção.
- Oi - eu disse, timidamente.
A garota olhou para mim, visivelmente amedrontada, e começou a se levantar, pronta para correr como da última vez.
- Espera, Anita, por favor - eu disse, fazendo-a parar por um segundo. Ela permaneceu de costas para mim - Olha, eu... eu soube que você curte Harry Potter... então eu... trouxe a minha coleção de livros pra você, eu tenho todos os 7, e já li todos, seria muito legal ter alguém pra comentar, sabe?... Os meus amigos odeiam Harry Potter - eu dei uma risadinha, tentando parecer simpática. O que parece ter funcionado, pois ela começou a se virar, lentamente, em minha direção.
- Eu já li os dois primeiros - ela disse, timidamente.
- Sério!? A Olívia não me disse isso, teria me poupado o trabalho de trazer todos (outra vez, a risadinha forçada).
- Mas olha, eu vou deixar todos com você, caso você queira ler de novo - eu disse, colocando os exemplares no chão.
- Obrigada - ela disse, finalmente se aproximando.
Ficamos em silêncio por alguns segundos, enquanto ela folheava, com dificuldade, alguns dos livros.
- Então... Talvez você não saiba, mas... os seis primeiros livros já viraram filmes...
- Você não veio até aqui pra falar sobre Harry Potter... Esses livros são apenas a única maneira que você encontrou de tentar se aproximar de mim para saber mais sobre... enfim... você perdeu o seu tempo, pode levar os seus livros, se quiser... ou pode deixa-los comigo, MAS EU NÃO VOU FALAR NADA SOBRE ELA, EM TROCA! - disse Anita, visivelmente assustada. O que era estranho, para um fantasma.
- Tudo bem, eu não quero te obrigar a nada, e pode ficar com os livros pelo tempo que você precisar, eu não me importo - eu disse, tentando parecer simpática.
- Sério? - ela perguntou, encantada.
- Sim, e faça bom proveito.
- Obrigada, muito obrigada...
- Tudo bem, não precisa agradecer.
Anita voltou-se para os livros, e vendo que eu não conseguiria arrancar nada dela, eu comecei a me retirar da ala de Literatura clássica, quando a mesma resurgiu na minha frente, quase me fazendo gritar com o susto.
- Eu queria ajudar você, sabe? - ela disse, amedrontada.
- Então me ajude - eu disse, tentando, ao máximo, permanecer simpática.
- Mas eu não posso - ela disse, angustiada.
- Por que não? - perguntei, calmamente.
Ela demorou a responder, seu olhar parecia distante e triste, como se ela estivesse revivendo algo muito doloroso. Tive a impressão de que, se ela pudesse, estaria chorando naquele instante.
- Você não faz idéia... do que ela fez... e acredite em mim... não importa o que ela esteja querendo fazer agora... é melhor você não tentar impedir.
- Anita, eu não posso ficar de braços cruzados...
- Eu também não fiquei de braços cruzados, na época... e olha o que aconteceu comigo.