terça-feira, 9 de novembro de 2010

Capítulo 15 - Cicatrizes


O sol se escondia atrás de nuvens cinzentas, aos poucos o céu ia tornando-se bucólico, o cheiro peculiar que antecede a chuva começava a penetrar as minha narinas. "Faz mal sentir esse cheiro"; eu pensava. Dona Olga dissera uma vez que era só senti-lo e esperar para pegar uma gripe no outro dia, mas eu não me preocupava com isso.
- Vai chuver - comentou Leonardo, que estava sentado ao meu lado nos batentes que antecediam a porta da minha casa.
- Eu sei... mas não quero entrar agora - eu respondi, descansando a minha cabeça em meus joelhos.
Eu senti o frio de Leonardo penetrar o local da cicatriz no meu braço esquerdo, ele a tocava, tentando me acariciar. Desejei que ele não tivesse feito aquilo, aquela maldita coisa no meu braço não me trazia lembranças das mais felizes. Naquele momento, decidi que nunca mais usaria blusa regata em toda a minha vida.
- Você nunca conversou comigo... sobre essa cicatriz... - comentou ele, me irritando ainda mais.
- Talvez eu simplesmente não queira falar sobre ela... - eu disse, me afastando um pouco dele, e como resultado, parou de me tocar - e eu já te disse tudo o que você precisava saber... vamos mudar de assunto, ou ficar em silêncio... - eu disse, voltando a enterrar a cabeça entre as minhas pernas.
- Me desculpe... eu não queria fazer você se lembrar...
- Mas fez! - eu disse, de forma arrogante, me arrependendo depois.
Percebi que Leonardo se afastava de mim, mas não o impedi, queria mesmo ficar sozinha. Eu olhei para o céu nublado mais uma vez, e fui tomada por uma tristeza indescritível, as primeiras gotas de chuva começavam a tocar a minha pele. Me encostei na porta, evitando ao máximo a chuva. Era novembro, e a cidade já estava em clima de Natal, algumas casas da minha vizinhança já estavam enfeitadas para a data, tudo a minha volta parecia indicar que o tempo passara, e muito, desde o dia em que Gabriela Machado tirara a própria vida na minha frente, mas aquilo ainda parecia tão vivo em minha memória, que era difícil acreditar que acontecera há onze meses. A água da chuva tocava os meus pés, deliciosamente, e por um momento me vi livre dos pensamentos sobre Gabriela, e admirei a chuva. Devo ter ficado ali por mais de meia hora, a chuva, no entanto, durou o resto do dia.

Na escola, as coisas haviam mudado muito desde o suicídio de Gabriela, claro que ela levou a culpa dos crimes cometidos, mas Lúcia Machado sempre defendia a filha, afirmando que , ao contrário do que diziam as autoridades, Gabriela nunca tivera problemas mentais, o que era verdade. A mulher até se atracara com a mãe de Alycia, que aos prantos, acusava a madre superiora de permitir que "psicopatas mirins" se matriculassem no Lar. Alycia não sobrevivera ao ataque fatal de Gabriela, fora encontrada já morta, afogada em seu próprio sangue, no banheiro feminino, o que também garantira mais um processo para a escola por parte da mãe da garota. Mas a pessoa que mais mudara era a madre superiora , a mulher parecia representar perfeitamente a situação pela qual o Lar estava passando, através de suas assombrosas olheiras, as marcas da velhice mais expostas, como feridas de guerra, e seu semblante derrotado. Olga estava menos ativa para manter a ordem no Lar, não visitava mais as salas durante as aulas, não fazia a sua inspeção noturna nos dormitórios, passava o dia inteiro trancada em sua sala, saindo apenas quando a solicitavam para alguma coisa. Os dias do Lar estavam contados, assim que o ano letivo acabasse, o colégio também teria o seu fim, e não havia nada que eu pudesse fazer. "Não conseguiu nem garantir que Helene não fizesse mal a pobre Gabriela, quanto mais salvar o Lar de seu fim, se renda a sua inutilidade, Amallya... Você é um fracasso, sempre foi e sempre será, acostume-se", eu pensava, toda a vez que tentava imaginar uma saida para a atual situação do meu amado colégio. Porém, dentre todas as coisas que mudaram na minha vida desde as tragédias que eu presenciara no Lar, eu nunca poderia imaginar que os meus amigos também seriam uma delas. Janaína estava mais estressada que o normal, e se isolava constantemente, já Olavo parecia me evitar, também começara a fumar mais, o que me fazia aconselhá-lo além do normal, afinal é para isso que os amigos de verdade servem, quando um amigo nosso está fazendo uma burrada consigo mesmo, nós temos que ser um pé no saco para ele.
- Esse é o terceiro que você fuma - comecei.
- E eu não preciso de alguém contando os cigarros que eu fumo, muito obrigado - respondeu ele, dando uma longa tragada para pontuar o seu "foda-se, o pulmão é meu".
- Desculpa por estar preocupada com você...
- "Desculpa por estar precocupada com você"... - desdenhou Janaína - Aaaah! Deixa ele se fuder, Carol! Parece até que é mãe dele... opa! Me desculpe, eu esqueci que a sua mãe não dá a mínima pra você - disse Janaína, começando a falar diretamente com Olavo.
Ele lançou um olhar explosivo e ao mesmo tempo surpreso, para Janaína, como se não a conhecesse, e saiu em direção ao bosque, sem dizer mais nada. Eu e Janaína ficamos sentadas sob a sombra da estátua do espírito santo, olhando uma para a outra.
- O que há de errado com vocês? - perguntei, em uma mistura de espanto e raiva.
- "O que há de errado?", "O que há de errado?" Dá um tempo, Carol! Para de perguntar o que há de errado com as pessoas, e comece a se pergentar o que há de errado com você, pra variar. Saco! - disse Janaína, também me abandonando, correndo em direção ao lobby do colégio.
E eu fiquei sentada ali, me perguntando o que acabara de ter acontecido e o porquê. Alguma coisa estava acontecendo entre Olavo e Janaína, eu conversaria com Lavinho sobre isso, mas não naquele momento. Eu corri para a biblioteca, na esperança de que a companhia de Olívia me acalmasse um pouco. Era incrível, por mais que Olívia não trocasse uma palavra comigo (como as vezes ela fazia quando estava muito ocupada), a simples presença dela me fazia bem.

- Some daqui! - disse Olívia, sem olhar para mim, estava concentrada na leitura de "Christine" de Stephen King.
- Eu gosto de pensar que essa é a sua maneira de dizer que estava com saudades.
- Se isso faz você se sentir melhor... - ela disse, me dando um leve e carinhoso sorriso, eu respondi da mesma forma.
Ficamos em silêncio, olhando uma para a outra por uns dois segundos, quando eu senti que Olívia lia a minha face, me senti invadida, e desviei o olhar.
- Você tá bem?... - perguntou Olívia, começando a ficar preocupada, ela sempre me lembrava a minha mãe quando fazia isso - Ainda se sentindo culpada pelo que aconteceu com a Gabriela? - perguntou, me irritando por ela me conhecer tão bem.
- Acho que é algo com o qual eu vou ter que aprender a lidar...
- Você não podia salvá-la, Carol...
- Mas você disse...
- Que pessoas como nós não precisam se preocupar com espíritos, mas sim eles com a gente, eu sei que disse isso, mas... eu sinto por não ter explicado o quanto pode ser perigoso para você tentar enfrentar um espírito como a Helene...
- Mas eu podia ter tentado... - eu insistia na minha culpa - Eu só não tive coragem...
- Nesse caso não seria coragem, querida, mas sim burrice, existe uma grande diferença entre os dois... Não deixe a culpa te consumir, Amallya, isso só vai fazer mal a você e as pessoas ao seu redor...
- Na verdade, eu acho que isso já tá acontecendo - eu falei, pensando em Olavo e Janaína, e em como os dois andavam estranhos.
- Como assim? - perguntou Olívia.
- Esquece... Deixa eu ficar aqui até o fim do intervalo? - eu pedi, me sentando na cadeira em frente ao birô de Olívia, observando-a segurar o livro que estava lendo.
- Tá... mas não me atrapalha, eu tô em uma parte interessante da história - ela disse, voltando a atenção para o livro.
E eu fiquei lá, com a cabeça deitada sobre o birô, esperando o toque da sirene anunciar o reinício das aulas. Meus penasamentos voltaram-se para Gabriela, e eu não pude evitar a pergunta...
- Olívia...?
Ela suspirou de raiva...
- Que parte de "não me atrapalha" você não entendeu, peste? - ela disse, carinhosamente.
- Se eu tivesse tido coragem de tentar expulsar a Helene do corpo da Gabriela, como você disse que os Elos são capazes de fazer... o que poderia ter acontecido comigo? - perguntei, já temendo a resposta.
Olívia ficou em silêncio, por um momento achei que ela fosse ignorar a pergunta...
- Como eu já disse, Carol... eu receio que você ainda não esteja preparada para isso... mas se você tivesse tentado, provavelmente teria conseguido salvar a Gabriela, e até mesmo expulsar a Helene deste mundo... mas digamos que... você não estaria viva para me contar como conseguiu - ela setenciou, me olhando profundamente, e depois de um certo tempo voltou à leitura.
Naquele momento, eu senti o estranho frio que vinha me assombrando desde o início daquele ano, me tomar pela espinha, não entrei em pânico, no entanto, pois eu já imaginava quem poderia estar atrás de mim...
- Oi, Amallya? - disse Anita, timidamente.
- Oi Anita... - me levantei rapidamente da cadeira, tomada pelo impulso de dar-lhe um abraço, pelo longo tempo em que não nos víamos, me dando conta, instantes depois, do quanto idiota seria se eu tentasse fazer aquilo - Nossa... fazia um tempão que a gente não se falava...
- Não vai dizer que eu estou diferente? - brincou Anita, mostrando um lado brincalhão dela que eu não conhecia. Já me acostumara a vê-la sempre amedrontada, ou enterrada em um livro, mas nunca fazendo piada.
- É... você parece mais morta do que nunca - eu disse, esperando que ela achasse graça, mas não foi o caso. Anita deu um sorriso, meio sem graça.
Olívia me deu um beliscão pela piadinha infeliz, eu sufoquei o grito pela dor, fazendo apenas uma careta.
- E aí, gostou da série? - eu disse tentando, desesperadamente, mudar de assunto.
- Que série? - perguntou Anita, meio perdida.
- Harry Potter... gostou dos livros? - perguntei novamente.
- Sim, eu adorei... Morre muita gente no final, e de morte eu já tô farta, mas valeu a pena ler. A gente pode conversar um instante? - ela perguntou, indicando a última ala de livros da biblioteca.
- Ah... claro! - eu disse, começando a acompanhá-la.
Nós duas fomos em direção a seção de História. A bilioteca parecia estar vazia.
- Eu queria te pedir desculpas - disse Anita, assim que nós chegamos à ala.
- Desculpas...? - eu disse, confusa- Você não tem que se desculpar por nada, Anita...
- Eu poderia ter te falado sobre a Helene antes, é impossível não ter a sensação de que... foi tarde demais...
- Saber a intenção da Helene com a Gabriela há mais tempo, não teria me ajudado a impedi-la de fazer o que fez...
- Mas eu fui tão... covarde...
- Você agiu como qualquer pessoa normal agiria, quando confrontada com lembranças dolorosas, Anita... Eu que te forcei demais, me desculpa... - eu fui interropida pelo som da sirene - Saco! Eu tenho que ir agora, foi ótimo rever você - eu disse, começando a me retirar da biblioteca.
- Mas... Amallya, eu... - começou Anita, parecendo querer me dizer algo.
- Depois eu passo aqui pra pegar meus livros, valeu!? - eu disse, passando direto pelo birô de Olívia, onde ela ainda lia, concentradamente.
- Tchau, Olívia - eu disse, abrindo a porta da biblioteca para sair.
- Boa aula - ela disse, sem parar de ler.
À noite, eu e Janaína não trocamos uma palavra antes de dormir. Eu contemplava a cama vazia de Gabriela Machado, enquanto um filme de memórias que eu daria tudo para esquecer, rodava na minha cabeça, me mantendo acordada por muito, muito tempo. Flashes do dia em que Gabriela Machado tirara a própria vida na minha frente, passaram a me assombrar todas as noites, como Helene costumava fazer. Sim, Helene havia sumido desde o dia da morte de Gabriela, mas era impossível evitar a desagrádavel sensação de que ela estava por perto, me observando na escuridão, por mais que eu não sentisse nada que denunciasse a sua presença.
Aos poucos eu pegava no sono, as lembranças ruins iam desfazendo-se lentamente em minha mente, até tudo se transformar em trevas...
Um grito ofegante me desperta, em plena madrugada. Janaína estava ensopada de suór, e respirava muito rápido. Eu esfreguei os olhos para despertar, e me voltei para ela, preocupada.
- Ína, você tá bem? - perguntei, acariciando o seu ombro.
- Eu... tô sim... foi só... só um pesadelo - ela disse, pressionando o rosto com as mãos.
- E... com o que você sonhou? - perguntei, curiosa.
- Eu... Droga! Não consigo lembrar - ela começou a chorar, e me abraçou subitamente, eu retribuí o abraço, um pouco surpresa.
- Me desculpa... - ela repetia, com o rosto pressionado contra o meu seio - por favor, me desculpa...
- Pelo quê? - perguntei, já imaginando o que poderia ser.
- Eu agi feito uma vaca, hoje cedo, não devia ter dito aquilo pro Lavinho, não sei o que me deu...
- Acontece, Ína... Todos nós fazemos merda, as vezes. Infelizmente, isso é perfeitamente humano - eu disse, beijando a sua testa suada, e fazendo ela olhar para mim - esquece o que aconteceu hoje, ok!?
- Mas... e o Lavinho... Acho que ele ainda tá muito puto comigo... Meu Deus! As coisas que eu disse pra ele... - ela recomeçou a chorar.
- Shhh, calma, calma... Amanhã eu prometo que eu te ajudo a falar com ele, tá bem? Agora, eu vou pegar um pouco de água pra você...
- Não precisa... Fica aqui, por favor... - ela implorou, parecendo realmente amedrontada pela idéia de ficar sozinha.
- Tudo bem, então...
- Você acha que a madre superiora iria nos condenar às chamas do inferno se a gente dormisse abraçadinhas, só hoje? - perguntou ela, fazendo gracinha. Ela voltara a ser a Janaína que eu conhecia.
- Foda-se a madre superiora e o seu preconceito idiota!... Além do mais... eu sempre fui um pouco afim de te dar uns amassos, mesmo - eu disse, entrando na brincadeira, abraçando-a forte.
Ína deu uma risada, e pulou para a minha cama. Nós ficamos abraçadas até o sono chegar, o que não demorou muito. Na manhã do dia seguinte, a irmã Joana nos acordou com uma cara de nojo, nos fazendo jurar, em nome de Deus, que nunca mais faríamos aquilo novamente. A gente fez o que ela mandou, sem levar à sério, quase rindo da cara dela, o que a gente só fez quando ela deu as costas, enfurecida.