quarta-feira, 12 de maio de 2010

Capítulo 8 - Volta


Eu abri os olhos, e a sensação era a de estar acordando de um pesadelo... Um pesadelo muito real. Teria mesmo acontecido todas aquelas coisas terríveis na noite passada? O banheiro feminino coberto de sangue anônimo, o desaparecimento de Barbara Regina, e a terrível maneira como esses dois fatores pareciam casar-se perfeitamente. Seria tudo isso real?
Eu olhei para a cama de Barbara, que permanecia intacta, exatamente como ontem à noite, e eu tive a minha resposta: Foi real, por mais assustador que pudesse ser... fora real, disso eu tinha certeza. As outras meninas ainda dormiam, inclusive Janaína. Eu olhei para o enorme relógio de parede, pendurado em cima da porta do dormitório, ainda faltava uma hora para a entrada da madre superiora. Eu não ia conseguir voltar a dormir, aliás, nem fazia mais sentido voltar a dormir. Então eu fiquei sentada na minha cama, repensando tudo o que acontecera no dia anterior, por exemplo, a maneira estranha com Gabriela agira durante o desastroso ensaio de A Paixão de Cristo, momentos depois de eu ter sentido a presença de Helene, e de ter visto ela, que observava fixamente os alunos que estavam no palco do auditório. Eu tinha que contar isso à Olívia, o mais rápido possível, isto é, na hora do intervalo. Não haveria outra chance, matar aula naquela escola era quase uma missão suicida. Teria que ser no intervalo. "Ótimo!", pensei, "Eu vou morrer de ansiedade até lá!". E eu ia mesmo.
As três aulas antes do intervalo pareceram durar uma eternidade. No primeiro toque de uma aula para outra, a minha vontade era de sair correndo pela porta da sala, direto para a biblioteca, sem dar a mínima para a madre superiora, ou para a morte lenta e dolorosa que eu sofreria nas mãos da minha querida mamãe, caso eu fosse suspensa da escola. Pedir para sair de sala com o pretexto de ir ao banheiro, ou trocar o absorvente, estava fora de cogitação, uma vez que a irmã Joana, que dera a primeira aula naquele dia, anunciara para a turma, com uma falsa expressão de "sinto muito" que "Excepcionalmente nesta manhã, todos os alunos estão proibidos de sair de sala antes do intervalo, não importa o quão urgente, inadiável, caso de vida ou morte, possa ser a causa do pedido, obrigada!". Eu não tinha outra opção, se não esperar...
Quando faltavam exatos cinco minutos para o meio dia, eu passei a encarar o relógio de parede, pendurado sobre a porta da sala. Por cinco minutos foi como se eu e aquele relógio fossemos as únicas coisas existentes na terra, cheguei a pensar que ouvia o barulho causado pelo movimento dos ponteiros. Observei os três ponteiros se encontrarem sobre o número 12 no relógio, e voei da minha carteira, ao som da sirene que quase não me deixou ouvir os gritos de protesto e Olavo e Janaína, pedindo para que eu os esperasse.
Eu subi, de dois em dois degraus, a escada para o primeiro andar, e corri em direção à biblioteca, finalmente respirando quando atravessei a porta dupla e parei ofegante diante do birô de Olívia, que me olhava assustada.
- Eu... (respirei fundo) preciso...
- De um banho! Você tá encharcada, menina! - disse Olívia, alarmada.
- Falar... com você... é importante... Porra! Pra quê eu fui correr tanto? - protestei, parando para repor todo o fôlego.
- O que pode ser tão importante? - perguntou Olívia, repreendendo com o olhar os outros alunos presentes na biblioteca, que me olhavam curiosos - Venha comigo - ela disse, levantando-se do birô, e me guiando até a sessão de história.
- Então... O que houve? - perguntou, sem me dar total atenção, pois observava os outros presentes na biblioteca, atrás de mim.
- Eu não sei se é realmente importante, mas... eu achei que você deveria ficar sabendo...
- Conta logo, então! - disse Olívia, finalmente demonstrando algum interesse sobre o que eu tinha para dizer.
- Ontem, durante o ensaio de A Paixão de Cristo, eu... eu vi a Helene...
- E a novidade é? - perguntou Olívia, sarcasticamente.
- Se você me deixar terminar, eu chego lá! - respondi, irritada. Olívia calou-se. - Bem... continuando... ela estava em cima do palco e olhava fixamente para os alunos que ensaiavam a peça... acho que ela nem fazia idéia de que eu podia vê-la... Ela tava tão... concentrada, e... pela forma como ela encarava as pessoas no palco, parecia estar puta da vida, ou sei lá... eu tava morrendo de medo, até chorei... - pude perceber que Olívia parecia séria, e ligeiramente preocupada - Mas isso não foi tudo... o pior foi que uma das alunas que estavam no palco, começou a agir de forma muito estranha, muito mesmo! Tipo estranho de comer merda e andar pra trás, sabe? Uma aluna novata... (estalei os dedos, tentando lembrar o nome dela) Gabriela! O nome dela é Gabriela, e... ela começou a gritar, ela parecia muito perturbada. Quando a coitada se deu conta de toda atenção que havia chamado, ela... saiu do auditório, chorando... e quando eu me dei conta, a Helene também havia sumido... - Olívia agora parecia totalmente distante - Ei! - tentei chamar a sua atenção - Então, o que você acha? Será que... essa tal de Gabriela também é um elo?
- Eu... acredito que não... Nós, elos, temos uma maneira diferente de vermos os espíritos, as vezes, se nós não sentimos a presença deles, um frio congelante que denuncia quando há algum espírito por perto...
- Eu sei como é, eu senti isso na noite em que o Léo apareceu no meu quarto.
- Enfim... quando não sentimos isso, um espírito pode passar por nós no meio da rua e ser confundido com uma pessoa viva, além disso, espíritos não podem identificar elos, só nós podemos identificar eles, um fantasma pode estar sendo observado constantemente por um elo e nem se dar conta disso, o que eu tô tentando te dizer é que... é muito raro um elo reagir histericamente à presença de um espírito... portanto, só pode haver uma explicação para o que aconteceu com a Gabriela...
- Que seria?
- É possível que ela estivesse vendo a Helene, mas... se eu estiver certa, e ela não for um elo, só há uma meneira disso ser possível, a Helene talvez quisesse que a Gabriela a visse, e... talvez estivesse atormentando ela, de propósito, alguns fantasmas fazem isso.
- Filha da puta! - xinguei baixinho.
- Porém, fantasmas não saem por aí aparecendo para pessoas normais sem nenhum motivo, Carol... Deus queira que eu esteja errada, mas... a Helene pode ter algum interesse em aparecer pra essa novata.
A imagem das camas de Barbara e Gabriela vazias no meio da noite anterior, me veio à cabeça, e eu me dei conta de que havia algo mais que Olívia precisava saber.
- Eu senti uma presença no dormitório, ontem à noite.
- O quê? - perguntou Olívia, assustada.
- Foi como se alguém tivesse deslizado uma pedra de gelo no meu corpo, eu tava dormindo e acordei com essa sensação, eu sabia o que significava, então... morrendo de medo, eu me enrolei toda com o cobertor e tentei dormir... Algum tempo depois eu acordei de novo... dessa vez com o grito que vinha do banheiro feminino... e reparei que nem Barbara e nem Gabriela estavam em suas camas.
- Espera... essa Gabriela é... é a Gabriela...? - Olívia tentava formular uma pergunta, sem muito sucesso.
- Sim! Essa Gabriela é a mesma que foi encontrada no banheiro feminino, ontem - respondi, empolgada.
- Meu Deus - Olívia parecia mais preocupada que nunca.
Ficamos em silêncio por alguns segundos, até a imagem dos polícias que perambulavam pela escola, e da razão para eles estarem ali, surgir na minha mente.
- Mas e aí... O que os políciais disseram sobre...? - não consegui encontrar uma definição para o que quer que tivesse ocorrido no banheiro feminino.
- Nada demais... eles encontraram várias marcas digitais na pia, e claro... tem todo aquele... sangue... Eles vão fazer de tudo pra descobrirem quem se ferrou naquele banheiro... Mas... tem outra coisa...
- Fala logo, pelo amor de Deus! - supliquei, morrendo de curiosidade.
- Segundo os especialistas em sangue...
- Especialistas em sangue?
- Eu sei, eu também não sabia que existia, mas enfim... eles disseram que... analisando a quantidade absurda de sangue encontrado na cena do crime... a vítima não foi só arremessada contra o espelho, mas... também pode ter sido esfaqueada, e uma vez enfraquecida, foi jogada contra o espelho, e bateu com a cabeça na pia... antes de chegar ao chão - disse, cautelosa para que ninguém na biblioteca, além de mim, escutasse o que ela relatava.
- Porra! - eu disse, horrorizada.
- Os professores e alguns funcionários estão sendo interrogados agora, os próximos serão vocês - disse Olívia, em tom de alerta.
- Você já foi interrogada?
- Ainda não, estão esperando o intervalo terminar pra esses ratinhos saírem daqui - disse Olívia, olhando impaciente para os alunos atrás de mim.
- Eles ainda estão procurando pela Barbara? - perguntei.
- Existe uma equipe trabalhando nisso, agora mesmo, pelo menos foi o que me disseram.
Eu pensei um pouco, e decidi fazer uma pergunta que me perturbava desde a noite passada, mas eu não sabia explicar ao certo a razão para tanto, era mais como uma intuição, eu acho.
- Você acha que a Helene pode ter alguma relação com tudo o que tá acontecendo? - perguntei, apreensiva.
- Eu acho que agora, mais do que nunca, você deveria tentar se aproximar da Anita. Ela estudou com essa Helene no tempo em que as duas eram vivas, não? Se existe alguém que pode nos contar algo sobre a Helene, é a Anita.
- Mas como eu vou conseguir me aproximar dela?
Olívia pensou por alguns segundos.
- Harry Potter! - disse ela, empolgada.
- O que Harry Potter tem a ver... Oh! Harry Potter! - eu disse, também empolgada.
- Exato! Na próxima semana traga todos os seus exemplares, e eu tenho certeza que você vai fisgar a confiança daquela falecida ratinha de biblioteca - disse Olívia, me lançando um sorrisinho malicioso.
- Ótima idéia, Liv!
- Ah! E tenta se aproximar mais da Gabriela. Com tudo o que anda acontecendo, ela deve estar se sentindo muito sozinha, aproveita isso! - disse Olívia, sugerindo uma idéia quase impossível.
- Eu acho que isso vai ser muito mais difícil do que tentar dialogar com um fantasma que se assusta até com a minha voz - respondi, desanimada.
- Eu sei que você vai conseguir. Agora vai comer alguma coisa, antes que o intervalo termine.
- Me lembrei de Olavo e Janaína, e da maneira como eu os havia abandonado na sala de aula.
- Tá! A gente se vê depois - eu disse, recomeçando a correr e tropeçando desastradamente no birô de Olívia.
- CUIDADO! SEU DESASTRE AMBULANTE! ISSO É MADEIRA IMPORTADA, CARAMBA! - gritou Olívia, preocupada com o birô.
- Eu corri para o refeitório, onde Olavo e Janaína conversavam algo, sentados em uma mesa próxima às janelas. Fui até eles, pensando em uma desculpa convincente para a maneira como eu havia deixado a sala.
- Oi - eu disse, ofegante.
- Olha só, Olavo, ela ainda lembra que a gente existe - disse Janaína, em tom de brincadeira, e eu me senti aliviada por ela não estar zangada da maneira como eu imaginava.
- Que merda foi aquela, cara? Você parecia até... Os vietnamitas fugindo do Dr. Manhattan, o Super Homem quando vê uma criptonita, ou...
- A gente já entendeu, Lavinho. Você é o super nerd, aqui! - disse Janaína, interrompendo o delírio nerd de Olavo.
Me divertindo com com eles, eu me sentei, e peguei a terceira bandeja na mesa, me dando conta do quanto amava aqueles dois. Olavo e Janaína sempre pediam uma bandeja para mim, quando eu não ia direto para o refeitório.
- Valeu pelo almoço, gente - eu disse.
- Valeu nada! Pode ir dando uma explicação pra você ter deixado a gente feito dois babacas chamando o seu nome, na sala de aula - disse Janaína, tirando o copo de suco da minha mão.
- Bem... - comecei a pensar, rapidamente, em uma resposta convincente - eu tive que... pegar um livro, que... sai muito, entende? - respondi, não convencendo nem à mim mesma.
- E cadê esse livro tão procurado? - perguntou Janaína, enfatizando cada palavra com o seu inconfundível sarcasmo.
- Eu... não cheguei a tempo, e alguém já tinha levado. Meu Deus, batata frita! - eu disse, tentando escapar de mais perguntas.
- Da próxima vez, vê se espera a gente - disse Olavo, enquanto bebia o resto do seu suco, fazendo um barulho irritante com o canudo.
- Ou pelo menos responde quando a gente te chamar - continuou Janaína, puxando o copo da mão de Olavo, e arremessando-o para longe, expressando assim, à sua inconfundível maneira, o quanto estava irritada com o barulho que o amigo fazia.
- Não que eu tivesse ido à biblioteca se você tivesse chamado a gente, eu... tenho muito medo da bibliotecária - disse Olavo, parecendo estar falando sério.
- Você tem medo de tudo que esteja relacionado à livros, Olavo - disse Janaína, expondo uma verdade sobre a personalidade de Olavo. Ele realmente odiava ler.
- Eu só havia conseguido devorar metade do meu almoço, quando o susto que eu levei ao ouvir o som da sirene, fez com que eu me engasgasse com a comida. Aconselhada por Janaína, eu bebi o resto do meu suco, e nós três voltamos para a nossa sala.
Ao chegarmos na porta da sala, nos deparamos com dois políciais que nos encaravam sérios, acompanhados da madre superiora. "Provavelmente, para nos interrogar", pensei, olhando para os dois homens, e me lembrando da informação que Olívia me dera na biblioteca.
Quando toda a turma encontrava-se na sala, que nunca estivera mais silenciosa, a madre superiora entrou, acompanhada pelos dois homens.
- Boa tarde a todos - disse a madre superiora, que parecia cansada.
- BOA TARDE, MADRE SUPERIORA - respondeu a turma, em uníssono.
- Esses senhores tem algumas perguntas para serem feitas a cada um de vocês, portanto... fiquem sentados em silêncio, enquanto esperam serem chamados - disse Amélia, dando espaço para um dos polícias, que era baixinho e tinha a barba por fazer.
- Quem for chamado, por favor, dê um passo a frente - disse ele, que para um polícial, não era dono de uma voz muito grave - Gabriela Machado - ele disse, encarando toda a turma, enquanto esperava que a tal Gabriela desse sinal de vida.
- A estranha Gabriela ergueu-se devagar, e caminhou, timidamente, em direção ao polícial, tentando evitar os olhares de suspeita lançados por todos na sala.
Pela ordem alfabética, Gabriela não deveria ser a primeira a ser chamada, mas todos sabiam que ela havia se tornado a principal suspeita do... desaparecimento?... de Barbara Regina. Talvez por esse motivo fosse a primeira.
O interrogatório dela deve ter durado cerca de quinze minutos, e então o polícial retornou à sala, desta vez, chamando por Alexandre Medeiros, namorado de Barbara, que parecia mais nervoso do que a própria Gabriela, quando atravessou a sala em direção ao polícial baixinho e mal encarado. Foi a última coisa que eu vi, antes de cair no sono. Eu escutei o meu nome, e acordei com a sensação de ter dormido por horas.
Amallya Caroline - repetiu o baixinho, irritado.
Surpresa, eu atravessei a sala, escutando as risadinhas de alguns alunos. O polícial encostou a mão gorda no meu ombro e me levou para fora da sala, direto para o refeitório. Ele me levou até a mesa mais próxima, e sentou-se de frente para mim.
- Quantos anos você tem, Amallya? - perguntou ele, sem nem ao menos esperar que eu me sentasse.
- Quinze... Dezesseis! Desculpe - respondi, me sentando em seguida.
- Vamos, decida-se, meu bem - disse ele, rindo, e olhando para o seu parceiro, esperando a mesma reação dele, que também riu, forçadamente.
- Eu tenho dezesseis anos - respondi, séria.
- Faz muito tempo que você estuda aqui?
- Desde o quinto ano.
- Você era próxima de Barbara Regina?
- Na verdade, não, desde o... - tentei me lembrar - quinto ano!... Quando ela cuspiiu um chiclete no meu cabelo, e eu... me vinguei, no dia seguinte, cuspindo um chiclete na boca dela... eu passei o dia inteiro mascando aquele chiclete - foi impossível evitar a risada, quando, automaticamente, me lembrei da cara da Barbara quando eu pisei no pé dela, com tanta força, que a dor obrigou-a a abrir a boca para gritar, a única chance que eu precisava para me vingar - ai, ai... - enxuguei uma lágrima do rosto - Bons tempos - eu disse, olhando para o polícial, que não parecia ter achado graça nenhuma.
- Onde estava por volta da meia-noite de ontem? - perguntou ele, impaciente.
- No dormitório - respondi, evitando o olhar acusador do polícial.
Ele ficou me encarando, um pouco intrigado, por alguns segundos.
- Eu já posso voltar pra minha sala? - perguntei, encarando-o.
- É... eu acho que isso é tudo - ele disse, dando um sorriso forçado.
Eu me levantei, e fui acompanhada pelo outro polícial até a minha sala.
Os interrogatórios terminaram por volta das cinco da tarde. Olavo e Janaína responderam as mesmas perguntas que eu. Me vi tentada a puxar conversa com Gabriela, só para saber o que os políciais haviam perguntado a ela. Sim, com certeza, não foram as mesmas coisas que eles perguntaram a mim, ou aos outros alunos do Lar.
Olívia me mandara fazer isso, eu deveria me aproximar de Gabriela... E não fazia idéia de como fazer isso. Fomos mandados mais cedo para o dormitório, naquele dia. Os políciais que fizeram os interrogatórios deixaram a escola por volta das seis e meia. Observei bem a madre superiora, quando ela nos levou até os dormitórios, e senti muita pena dela. A sua face parecia representar o medo que todos no Lar estavam sentindo desde a noite passada. O olhar choroso, e as olheiras, denunciavam que a pobre velha passara a noite em claro, provavelmente pensando no futuro do Lar, agora que o colégio tinha um possível desaparecimento em seu histórico. Como ia ficar a imagem da escola se os pais de Barbara decidissem processar a instituição, caso a menina não fosse encontrada? O que seria da própria madre superiora, e doa outros funcionários, que há anos trabalhavam somente no Lar? Esses e outros problemas, provavelmente, deveriam estar martelando insistentemente na cabeça de Amélia. E a única solução para todos eles seria o reaparecimento de Barbara (viva ou morta).
Aquele dia se passara. E Barbara continuava desaparecida.
Na quinta feira, no intervalo, eu voltei à biblioteca, esperando que Olívia me desse alguma informação sobre a procura por Barbara Regina. Ela não sabia de nada, além do rumor de os pais de Barbara haviam aparecido na escola, por volta das dez horas, na noite passada, e desesperados, ameaçaram todos da equipe de investigação, a madre superiora e o próprio Lar. Olívia também me falou sobre o seu interrogatório, que não foi muito diferente do meu, até que a nossa conversa foi encerrada pelo toque da sirene, e eu voltei para a minha sala.
Ao som dos protestos da madre superiora, os políciais da equipe de investigação que a cada dia pareciam menos esperançosos, deixaram a escola antes do anoitecer, e assim, a quinta-feira se passara. Um dia monótono, e ao fim dele, a cama de Barbara permanecia vazia.
Na sexta-feira, durante o intervalo, eu fui até a biblioteca para a minha conversa diária com Olívia, que me informou sobre o último escândalo que os pais de Barbara protagonizaram na sala da madre superiora, que não pôde fazer nada, além de ouvir os protestos do casal, calada. E era o mínimo que a pobre mulher podia fazer por aqueles dois pais inconsoláveis, uma vez que a única filha deles sumira dentro da própria escola onde estudou durante anos, sem deixar nenhuma pista, além de um rastro de sangue.
Sim, segundos Olívia, que naquele mesmo conversara com um dos políciais responsáveis pela investigação, o sangue e as impressões digitais coletadas no banheiro feminino realmente pertenciam à Barbara.
- Meu Deus... - foi tudo o que eu consegui pronunciar, depois de ouvir as palavras que saíram da boca de Olívia.
- Eu sei... é... horrível... mas é a verdade - ela disse, também abalada.
- Mas... se todo aquele sangue realmente pertencia à Barbara, então... ela pode estar morta, agora, não!?
- Existe uma grande possibilidade de que isso seja verdade - respondeu Olívia, preocupada.
- Ok... - respirei fundo - é impossível que a Helene tenha alguma coisa a ver com isso... afinal... um fantasma não poderia matar alguém... poderia? - perguntei, sem acreditar nas palavras que saiam da minha boca. Era muita loucura para mim.
- Não... não poderia, querida - respondeu Olívia, evitando o meu olhar. E por alguma razão, eu não acreditei nela.
Quando anoiteceu, pouco a pouco, os alunos foram levados de volta para suas casas, por seus respectivos pais. Olavo se despediu de mim e Janaína, quando sua mãe chegou por volta das sete da noite, dirigindo o seu velho fusca branco, onde eu já pegara carona inúmeras vezes. A tia de Janaína chegou minutos depois, a pé, pois elas moravam à dois quarteirões da escola. Ína se despediu de mim com um longo abraço e dizendo que, se não tivesse que recepcionar, que voltaria da Itália naquela noite, ficaria na escola para me fazer companhia.
Eu nunca havia me sentido tão sozinha como naquela noite. Além de mim, haviam mais outras cinco garotas no dormitório. Eu já estava acostumada a ficar sozinha nas noites de sexta feira, graças a preguiça da minha mãe de me pegar no colégio por volta das 22h, horário em que terminava de lecionar história, em uma importante faculdade de São Paulo. Mas eu nunca havia sentido tanta falta de ter Janaína ao meu lado, como naquela noite. Associei isso ao medo de me deparar com a imagem de Helene, me encarando na escuridão. Medo esse, que eu adquirira desde a noite em que eu sentira a estranha presença no dormitório.
Com dificuldade, eu comecei a cair no sono, e sonhei...
Eu estava no primeiro andar, e olhava fixamente para a porta dupla no final do corredor. A biblioteca estava diferente, as luzes apagadas. Eu adentrei o breu, que tomava conta da biblioteca como uma criatura feita de escuridão... prestes a me devorar. Eu nunca havia entrado em um lugar tão escuro. De repente, a biblioteca inteira foi iluminada por uma luz fraca e amarelada. Eu estava em meio ao corredor da ala de história, que parecia mais extenso que o normal. No final dele, eu pude perceber uma figura encolhida no canto da parede. Era Anita, e ela chorava feito um bebê. Eu me aproximei da garota, devagar, e toquei o seu ombro, dizendo...
- Anita... você tá bem?
Ela ergueu o seu olhar para mim, os olhos inchados de tanto chorar.
- Ela sabe... - sussurrou Anita.
- Ela quem? - perguntei, começando a ficar assustada.
Aos prantos, a garota apontou, timidamente, para o outro lado da enorme ala. Tomei coragem para olhar na direção que Anita me indicara, e quando finalmente o fiz, me arrependi profundamente. Eu quis gritar, mas tudo o que consegui foi chorar... um choro sufocado... de medo. No outro lado do corredor de livros, Helene me encarava, da mesma maneira intimidadora e com o mesmo sorriso, quase imperceptível, em seu rosto. A sua farda estava coberta de sangue, e sua mão direita segurava uma faca de cozinha, também ensanguentada. Ao seu lado, o corpo de Barbara Regina estava deitado no chão, o abdômen da jovem sangrando incessantemente, e seu olhar petrificado de pavor. Eu fiquei paralisada pelo medo, podia sentir as lágrimas deslizarem pelo meu rosto. Inconscientemente, levei as minhas mãos ao meu abdômen... em estado de pânico, percebi que também sangrava. Desesperada, eu tentava estancar o ferimento, que teimava em continuar derramando o meu sangue. Olhei novamente para Helene, ela estava mais perto de mim... não disse nada, só continuou a sorrir.
- Acorda, Amallya! - disse uma voz feminina e arrogante.
Eu acordei, ainda em estado de choque. A camisola colada no corpo e encharcada de suor, me fez pensar, por um instante, que eu ainda sangrava. Eu respirava, ofegante. Foi quando percebi que todos os olhares no dormitório estavam voltados para mim. A irmã Joana me encarava, assustada e com um certo desdém.
- Você está bem, minha filha? - perguntou ela, em tom de falsa gentileza.
- Eu... tô... tô bem sim, foi... só um pesadelo - respondi, ainda ofegante.
- Bem... você não teria pesadelos se rezasse todas as noites, antes de dormir... mas, sinceramente, esse não é o tipo de costume que eu esperaria ver uma criança como você, praticar - disse Joana, agora, sem nenhum receio em demonstrar o seu desdém - Sua mãe está esperando por você no refeitório - ela disse, me dando as costas e retirando-se rapidamente do dormitório.
"Que direito essa puta tem de julgar a minha fé, ou a falta dela?", pensei, me mordendo de raiva.
Apertei os olhos com força, e os esfreguei com as duas mãos, na intenção de expulsar da minha cabeça as imagens do meu último pesadelo. Sem sucesso. Flashes daquele, e de outros pesadelos, ainda me atormentariam por muito, muito tempo.
No chuveiro, me dei conta de que, com tudo o que vinha acontecendo nos últimos dias, eu havia até me esquecido do quanto eu estava ansiosa para rever Leonardo (ou... o fantasma dele? Não importava!). Me arrumei o mais rápido possível, e quase tropecei quando desci correndo as escadas para encontrar a minha mãe no refeitório.
Olga me esperava, fumando um cigarro, e batendo o pé, impaciente.
- Amém! - ela disse, quando me viu atravessar o arco do refeitório.
- Também tava com saudade, mãe - eu disse, de forma sarcástica.
Ela me deu um rápido beijo na testa.
- Como foi a sua semana? - ela perguntou, por obrigação, e começou a andar em direção à saída.
- Monótona - respondi, tentando acompanhar os seus passos.
Nós atravessamos o lobby da escola, e o pátio introdutório em seguida. Quando o enorme e velho portão da escola começou a se fechar atrás de mim, dei uma última olhada para o Lar. Helene estava no pátio, ao lado da estátua do espírito santo, me encarando, com o mesmo sorriso sacana, que eu começara a odiar, ao invés de temer. Por um segundo, imaginei ela dizer: "Adeus... a gente se vê em dois dias... vou ficar te esperando". Foi quando eu desviei o olhar, apertando os olhos com força, e entrando no carro da minha mãe, o mais rápido que eu pude. Fechei a porta, sem coragem de olhar através da janela.
Durante todo o percurso de carro, eu procurei desviar os meus pensamentos do Lar, de Helene, e de Barbara Regina. Passei a pensar em Leonardo, e na infeliz possibilidade de que ele não estivesse esperando por mim em meu quarto, com o seu típico sorriso de lado. E, ao mesmo tempo, eu tentava alimentar a acolhedora ilusão de que eu iria revê-lo naquele dia.
Sem esperar que Olga estacionasse o carro na velha garagem da nossa casa, eu peguei a chave da casa no porta-luvas, abri a porta do carro, rapidamente, e corri para a porta de casa. Mamãe perguntava em voz alta o motivo da minha pressa. Sem responder, eu entrei em casa e subi, de dois em dois degraus, a escada em direção ao meu quarto. Eu abri a porta.
Leonardo não estava lá. Ainda ofegante, eu revistei todo o quarto, procurando o fantasma do meu namorado, mas não havia sinal algum dele. Eu sentei na minha cama, desamparada. E droga! Já podia sentir as malditas lágrimas brotarem dos meus olhos.
Enxuguei o rosto quando escutei dona Olga resmungando, enquanto subia a escada.
- AH! SE VOCÊ PENSA QUE A ESCRAVA DA SUA MÃE VAI PEGAR AS SUAS MALAS, PODE IR TIRANDO O SEU MALDITO CAVALINHO DA CHUVA! EU TÔ MORTA DE CANSADA E... - Olga entrou em seu quarto, e continuou reclamando, apesar de eu não poder mais ouvir, ao certo, o que ela dizia. Foi quando eu senti... O toque de algo que parecia ser uma mão muito, muito fria. A minha espinha gelou, e elogo todos os pêlos da minha nuca estavam arrepiados. Eu engoli um grito de pavor, e olhei para trás.
- Te assustei? - perguntou Léo, soltando uma risada.
- Meu Deus, Léo! - eu não aguentei, as lágrimas desabaram do meu rosto, descontroladamente.
- Me desculpa... - ele disse, parecendo realmente arrependido - Você vai acreditar se eu disser que não foi de propósito? - perguntou Léo, se esforçando para conseguir tocar o meu rosto, levemente, na tentativa de me acalmar.
- Não mesmo, seu idiota - eu respondi, sorrindo. O toque dele me acalmara. A simples presença dele me fazia bem.
- Eu senti sua falta - ele disse, se aproximando de mim. Eu pude sentir o frio que a sua presença transmitia.
- É mesmo?... Eu adoraria poder dizer o mesmo, só pra você não ficar triste - brinquei.
- Sério... Mentir, não é o seu forte - ele disse, abrindo um largo sorriso.
- Qualé! Eu não convenci nem um pouquinho? - perguntei, também rindo.
- Não mesmo - ele disse, se aproximando dos meus lábios.
Eu deixei que a sua boca encostasse na minha, e logo o meu corpo inteiro estava tomado pelo frio transmitido pelo toque de Leonardo. Naquele momento, eu me dei conta do quanto eu sentira a sua falta. Minha vontade era de poder agarrar a nuca dele e não libertá-lo nunca mais. Poder, realmente, tocá-lo, sentir o calor exalado do seu corpo... mas isso era impossível. E tudo o que eu sentia com o seu... toque?... agora, era frio... o acolhedor frio da morte.
Ele se afastou, parecendo distante.
- Eu vi outros fantasmas - eu disse, sem saber ao certo a razão de ter tocado naquele assunto.
- O quê? Onde? - Ele perguntou, preocupado.
- No lar...
- Que tipo de fantasmas?
- E por acaso existe diferença? - falei, achando graça na pergunta de Leonardo.
- Como... como eles eram, Amallya? - ele perguntou, nervoso.
- Duas garotas que já estudaram no Lar, mas porque isso é tão importante, Léo? São só... fantasmas... certo? - perguntei, começando a ficar preocupada também.
- Com que frequência elas aparecem pra você? - perguntou, encarando o chão, e com as mãos apoiando a cabeça, como costumava fazer quando estava preocupado, ou se concentrando em algo.
- Bem... Uma delas... a Anita, não parece gostar muito de mim, ela vive na biblioteca, e Olívia pode vê-la também...
- A bibliotecária esquisitona? - perguntou, me encarando com curiosidade.
- Sim, mas eu explico isso depois... Na verdade... é outro espírito que tá me deixando maluca... Helene, ela... ela é a que mais aparece, e... na maioria das vezes, é como se ela estivesse me desafiando...
- Ela sabe que você consegue vê-la? - ele perguntou, levantando-se da cama.
- Eu acho que... sim.
- Meu Deus, Amallya! Você não podia ter deixado isso acontecer...
- Calma, Léo... Ela não pode fazer nada comigo... - a imagem do banheiro feminino coberto de sangue me veio à cabeça.
Leonardo estava agora apoiado no para-peito da janela, e parecia estar com raiva.
- Você ainda se lembra... da Barbara? - perguntei, decidida a deixá-lo saber de tudo.
- Quem? - ele perguntou, direcionando o olhar para mim, novamente.
- Barbara Regina... Você ainda se lembra dela?
- Barbara Regina...? A patricinha que te odiava, e vivia dando em cima de mim?
- Sim.
- Mais do que eu gostaria... por que a pergunta? - disse Léo, curioso.
Eu contei a ele tudo o que acontecera no decorrer dos últimos dias, desde a descoberta do meu dom, que mais me parecia uma maldição, até as aparições de Helene, a sua relação com a misteriosa Anita, a maneira como a novata Gabriela agira durante o ensaio de A Paixão de Cristo, e claro, o banho de sangue no banheiro feminino.
Leonardo escutou toda a história, com o mesmo semblante sério, e sem me interromper em momento algum. O silêncio dele ao final do meu relato, me fez perguntar...
- Você acha que essa tal de Helene pode, de alguma forma, ter causado tudo isso?
Com um olhar distante, ele suspirou de maneira preocupada, e alisou o cabelo, rapidamente.
- Antes de... voltar pra você... eu... estava nesse lugar tão... cheio de paz... muito, muito diferente de tudo isso aqui... e lá haviam outros... espíritos...
- E você podia... falar com eles? - perguntei, um tanto fascinada.
- Não... mas eu podia senti-los... eu podia sentir... o que eles sentiam, ou... a energia deles, sei lá... e acredite Amallya... - nesse momento ele se voltou para mim, com um olhar sincero e profundo, que me assustou um pouco - nem todos esses sentimentos... eram bons - senti os pêlos da minha nuca ouriçarem, e tremi. Leonardo parecia ter percebido o meu medo, e acariciou o meu rosto, na tentativa de me tranquilizar - Portanto... Você vai prometer, pelo amor que você ainda sente por mim... que você não vai se envolver com seja lá o quê esse espírito... Helene... estiver tramando... por favor, Amallya... não corra perigo... porque eu não vou poder te proteger... dessa vez - ele implorou, com as duas mãos sobre a minha face. O seu olhar de súplica... e medo... ficaria cravado na minha mente para sempre.
- Eu... prometo - eu menti, enquanto sentia uma lágrima solitária descer o meu rosto, levemente.
A promessa, que eu jamais cumpriria, foi selada pelo encontro gélido de seus lábios com os meus.