sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Capítulo 18 - O fantasma na janela




Estava prestes a chuver. Eu estava sentada sob a estátua do espírito santo, ao lado dos meus dois melhores amigos, e olhava admirada para as nuvens cinzas no céu, que aos poucos pareciam devorar o sol e sua luz radiante. Era sexta-feira da semana em que Olavo e Janaína viveram, talvez, o episódio mais assustador de suas vidas. Os dois esperavam por seus pais, e eu, claro, só fazia companhia, pois assim como outros poucos alunos, só voltaria para casa no sábado de manhã. Na quinta-feira as provas do quarto bimestre haviam acabado, portanto não haveria aula naquela sexta. Um dia após o ocorrido na casa de Janaína, eu revelei à madre superiora o paradeiro do corpo de Barbara Regina, contando uma mentira sobre eu ter ouvido uma perturbada Gabriela falando sobre o Refugium em um devaneio noturno. E algo que me chamou muito a atenção foi a reação da madre superiora ao ouvir sobre o Refugium; ela parecia perdida no tempo, sendo atormentada por imagens de um passado já esquecido, enquanto se perguntava audivelmente como seria possível alguém ter descoberto o tal lugar. Cheguei a questioná-la sobre o quanto ela sabia a respeito do Refugium, mas ela me ignorou, agradecendo pela informação, e ordenando que eu saísse de sua sala. Depois que o corpo de Barbara foi retirado da câmara, os seus pais foram chamados a escola, e tiveram uma longa conversa com a madre superiora em sua sala, enquanto a mãe de Barbara chorava audivelmente. No mesmo dia, a madre superiora convocou todos os alunos do Lar, para uma reunião no refeitório, onde anunciou, sem mais detalhes, que o Lar permaneceria aberto por mais três anos. Mais tarde, eu descobri que, depois que o corpo de Barbara foi encontrado, a madre superiora, juntamente com o seu advogado, entraram em um acordo com os pais da menina, para que cancelassem o pedido de fechamento da escola, por um prazo inicial de três anos, em troca do pagamento de idenizações mensais, o que resultaria na diminuição do salário de alguns funcionários menores da escola, mas a vida não é justa para todos, não é verdade!? Como, por exemplo, para a mãe de Gabriela, que teria que engolir uma terrível mentira sobre a sua filha, e conviver com ela por toda a vida. Mas isso era algo que eu não podia suportar, não quando eu sabia a verdade a respeito do que acontecera com Gabriela. Por isso eu descobri o telefone de Lúcia Machado, e chamei-a para aparecer no Lar para me encontrar, alegando ser uma amiga de Gabriela, que sabia a verdade sobre as mortes no Lar, e sobre o grau de envolvimento da garota com tais acontecimentos. Claro que ela apareceu, e claro que ela pensou que eu estava maluca, depois de ter pensado que eu só queria zombar da sua triste situação, e me deu as costas, ofendida, mas também muito chocada por ter ouvido os nomes "Helene" e "Refugium", e o quanto eu sabia sobre o seu passado no Lar. No entanto, apesar da sua reação nenhum pouco agradecida, eu me senti melhor por ter contado a verdade para Lúcia, por mais que ela não acreditasse totalmente nela.
Os primeiros pingos de chuva começaram a cair, timidamente...
- Eu odeio chuva - comentou Lavinho, cortando a minha linha de pensamento sobre os acontecimentos daquela semana que se encerrava.
- Eu gosto, as vezes - disse Janaína, acenando para alguém na multidão de pessoas que saiam e entravam no Lar.
Eu olhei em direção à pessoa para quem ela acenava, e vi que era a sua mãe, Paula, ainda com as feridas em seu rosto, causadas por Helene. Os machucados, no entanto, não afetaram a sua beleza.
- Bom dia - ela disse, sorrindo, um pouco envergonhada, para nós três.
-"Bom dia" - respondemos eu e Lavinho, sincronizadamente.
- Oi, Amallya... - ela começou, olhando para mim.
- Oi - eu disse, timidamente.
- Eu... acho que não te agradeci propriamente pelo que você fez por mim e por minha filha...
- Não é necessário, Paula. Pela Ína eu faria tudo de novo se fosse preciso - eu disse, com toda a minha sinceridade.
- E nós vamos nos casar, mãe, quer a senhora goste, ou não - brincou Janaína, fazendo eu e Olavo cairmos na risada. A mãe dela permaneceu séria.
- Eu... era tão idiota na época em que estudei com a Helene... acho que todos nós éramos, na verdade... Eu confesso que tinha inveja da Helene... mais ainda da amizade que ela tinha com o Caio e o Marcos... Mas... eu nunca quis que terminasse da meneira como terminou... eu nunca quis matar ninguém... - disse Paula, e eu pude perceber, pela tristeza em seu olhar, que aquelas não eram meras palavras jogadas fora.
- Helene causou a sua própria morte... Você não é inteiramente culpada pelo que aconteceu, Paula. - eu disse, tentando consolá-la.
Ela tentou esconder as lágrimas que desciam pelo seu lindo rosto, com um enorme sorriso.
- Obrigada... - ela disse, enxugando as lágrimas de seu rosto - Apareçam lá em casa, no domingo... eu preparo um jantar pra vocês três, e talvez, se seus pais deixarem, vocês poderiam dormir lá, ou sei lá.
- Ok... - eu disse, achando muito estranho o convite de Paula, que desde o dia em que eu quebrara o seu precioso pavão-super-brega, não quis me ver nunca mais em sua casa - Vou tentar não quebrar nada, dessa vez - brinquei.
- É bom mesmo - disse Paula, dando uma risada - Vamos, filha!? Eu não quero estar fora do carro quando essa chuva engrossar - disse Paula, apressando Janaína.
Ína abraçou a mim e a Olavo, ao mesmo tempo, eu lhe dei um beijo no rosto.
- Obrigada - disse Janaína, baixinho, nos apertando forte, e passando a seguir a mãe que já caminhava em direção ao carro.
- A ína reagiu melhor do que eu imaginava quando soube o que houve com ela... quer dizer... não é uma história fácil de engolir, sabe!? - comentou Olavo, quando Janaína se afastou.
- Ela não estava totalmente inconsciente quando a Helene tomou posse de seu corpo, Lavinho... Eu tenho certeza que a Ína sentiu algo enquanto a Helene maltratava ela daquele jeito... Além do mais, fomos nós que presenciamos e contamos a história toda pra ela, somos seus melhores amigos... Por que ela não acreditaria na gente?
- Tem razão... acho que... foi tudo tão louco que nem mesmo eu, que estava lá, acredito que realmente aconteceu...
- Acho que o seu pai chegou... - eu disse, olhando para um homem, do lado de fora do colégio, acenando em nossa direção.
- É ele sim... odeio te deixar sozinha aqui - disse Lavinho, mais uma vez demonstrando o quanto fofo ele podia ser quando queria.
- Tudo bem, já tô acostumada - eu disse, escondendo a minha vontade de que ele continuasse me fazendo companhia, antecipando a sensação de solidão que eu sempre sentia quando subia para o dormitório sem a presença de Ína e Lavinho, nas noites de sexta-feira.
- A gente se vê no domingo, na casa da Ína!? - disse Lavinho, me dando um beijo no rosto e um abraço apertado.
- Até lá - eu disse, acenando para ele, que já corria em direção ao pai.
Logo eu me vi sozinha, em meio à imensidão do pátio frontal, e olhei para o bosque por alguns segundos: o que, obviamente, me trouxe péssimas lembranças. No mesmo instante, a chuva começou a cair com força, me obrigando a voltar para dentro da escola. Enquanto pensava no que fazer para passar o tempo, me lembrei que Olívia voltara a trabalhar, depois dos dois dias de folga que seu atestado médico lhe garantira, graças ao corte em seu braço. Feliz por ter onde gastar o meu tempo livre, e pela possibilidade de rever Olívia, corri o mais rápido que pude para a biblioteca, imaginando como estaria a minha amiga, depois da sua recuperação. Chegando à porta da biblioteca, pude ver através do vidro, que Olívia usava uma faixa em volta do braço, e arrumava os livros em sua mesa com uma certa dificuldade. Eu entrei feito um furacão na biblioteca e corri para dar um forte abraço em Olívia, o que não foi uma boa idéia...
- Liv! - eu disse, empolgada, abraçando-a forte, pressionando o seu braço machucado, sem ter a intenção.
- Porra, Carol! - reclamou Olívia, se livrando dos meus braços - Essa maldita faixa em volta do meu braço tá sutil demais pra você!? Essa droga ainda tá doendo, e muito.
- Me desculpa... Como você tá? - eu perguntei, preocupada.
- Eu tava muito bem até você entrar, pode ter certeza - ela disse, ainda rabugenta
- Meu Deus! Eu tava com tanta saudade! - eu disse, empolgada.
- Queria que o meu braço me deixasse dizer o mesmo de você - ela disse, dessa vez em tom de rincadeira.
- Deixa de frescura, nem deve tá doendo tanto assim - eu disse, também entrando no espírito de brincadeira.
- Como é que vão os seus amiguinhos estranhos? - perguntou, voltando ao trabalho com os livros sobre o seu birô.
- Bem, o Lavinho tá ótimo, e a Ína reagiu muito bem quando nós contamos o que aconteceu... A Paula não engoliu a história toda, no início... mas foi só porque ela ficou maluca quando acordou e viu o quarto naquele estado.
- Quem sabe se ela tivesse acordado e visto as tripas da filha no carpete caríssimo dela, não tivesse botado mais fé na história - brincou Olívia.
- Eu queria te agradecer por tudo... Se não fosse você... - comecei, sendo interrompida por Olívia.
- Por favor, querida, pode ir parando aí! Eu não fiz aquilo tudo sozinha, e você sabe disso - começou Olívia, me deixando confusa.
- Como assim? Eu não fiz nada...
- Claro que fez, Carol. Quando você usou os seus poderes contra a Helene, ela foi fatalmente enfraquecida, e isso me ajudou muito, quando foi eu tive que entrar em ação, acredite - explicou Olívia - Da maneira como eu estava ferida, nunca teria conseguido usar os meus poderes contra a Helene, mas... você me ajudou. Claro que foi irresponsabilidade minha, ter incentivado você a lutar contra a Helene, com a sua falta de experiência, mas... eu não tinha escolha... nós não tinhamos escolha... enfim... me desculpe, ok!? - ela disse, parecendo realmente estar se sentindo culpada.
- Vai se fuder, Liv! Você não precisa se desculpar de nada, se não fosse você, eu nem estaria...
- Nossa! Vocês duas não vão parar de ficar puxando saco, uma da outra!? Dá um tempo, pô! - disse Anita, inesperadamente, se intrometendo na conversa.
Nós três começamos a rir do comentário.
- Carol... Eu posso falar com você? - perguntou Anita, dirigindo-se a mim.
- Fiquem à vontade, eu vou voltar a organizar esses livros - disse Olívia, sentando-se na cadeira atrás do seu birô.
- Claro, Anita... Vamos pra sessão de História - eu disse, começando a caminhar com Anita até a última ala da biblioteca.
- Eu preciso te esclarecer umas coisas... - começou Anita, quando nós chegamos à reservada sessão.
- Que coisas...? - perguntei, confusa.
- Eu tenho certeza que a Helene deve ter te contado... sobre o ocorrido no Refugium... - começou ela, parecendo lutar contra lembranças dolorosas.
- Sim... ela me disse o que aconteceu, ates de me atirar naquele buraco - eu disse, sentindo o meu sangue gelar, como resposta às lembranças daquele dia, ainda muito frescas em minha memória.
- Ela deve ter dito que... eu traí ela, e aos meus amigos Caio e Marcos... Mas... é tudo mentira... - disse Anita, me fazendo achar que ela começaria a chorar a qualquer momento - Eu fui obrigada pela Paula e suas amigas... Elas... me bateram... e... disseram que fariam da minha vida um perfeito inferno, se eu não dissesse a elas onde era o Refugium... eu... eu não quis que nada daquilo acontecesse, foi tudo tão... tão terrível... Quando aquela enorme viga desabou... nos aprisionando lá, para sempre... - disse Anita, assustada como nunca.
- Calma, Anita... - comecei, tentando acalma-la, ignorando o quão idiota era a situação em que eu me encontrava; uma adolescente viva tentando consolar um espírito apavorado - Eu não permitiria que nada criado pela mente doentia da Helene afetasse a imagem que eu tenho de você... e tenho certeza que o Caio e o Marcos lhe consideravam uma grande amiga - eu disse, com toda a minha sinceridade. Foi quando eu percebi o quanto eu realmente gostava daquela assustada e encantadora menina.
- Obrigada... - ela disse, finalmente esboçando um tímido sorriso - Ah! Eu vou devolver seus livros...
- Livros?
- Harry Potter...? Não se lembra? - ela disse, rindo.
- Ah, claro! Que idiota. É que já faz tanto tempo...
- Obrigada por ter emprestado... apesar das segundas intenções... - ela brincou - Eles estão todos no final dessa prateleira atrás de você, ao lado da coleção de enciclopédias sobre História do Brasil - ela disse, me indicando o lugar.
E nós passamos o resto do dia conversando sobre séries literárias de sucesso (do tempo dela e do meu, claro), garotos, amizade verdadeira, e muitas outras coisas deliciosas de se falar sobre. A única coisa que interrompeu a nossa conversa foi o toque para o almoço, que naquele dia teve como prato principal o famoso filé com fritas e arroz. Comi tanto, que dormi o resto da tarde. Durante a noite, eu fui até a biblioteca e desejai feliz Natal para Olívia e para Anita, sendo mais uma vez tirada de lá pelo toque do jantar. Depois de ter tomado dois pratos de sopa de legumes, eu fui dormir pra valer, ansiosa para rever o lindo fantasma que abrigava o meu quarto, no outro dia.

- O que houve com o seu rosto, garota? - perguntou a minha mãe, assustada com os poucos fermentos causados pelo confronto com Helene.
- Nada demais, dona Olga. Eu tropecei enquanto corria pelo bosque, idiotice minha - eu disse, tentando ser o mais convincente possível com a minha mentira.
- Então você voltou a ter quartoze anos de idade, é isso!? Era só o que me faltava - resmungor Olga, começando a me deixar para trás, enquanto caminhava em direção ao carro, no lado de fora do Lar.
- Eu tô bem, valeu por perguntar, mãe - eu brinquei, enquanto tentava acompanhar ela.

Chegando em casa, eu subi os degraus da escada em direção ao meu quarto, como se a minha vida dependesse disso.
- Vai se machucar de novo, criatura! Que pressa é essa? - gritou a minha mãe, do andar de baixo, enquanto eu já entrava em meu quarto.
Recuperei o fôlego e dei de cara com Leonardo, que estava em pé, me encarando, como se já me esperasse há tempos. Sem dizer nada, ele correu em minha direção, e me beijou como nunca fizera desde a sua volta. O frio que vinha dele me tomou por inteira, arrepiando cada pêlo do meu corpo. Eu podia sent-lo quase atravessar o meu rosto, o que me fez pensar que talvez ele estivesse nervoso. Eu tive que me afastar dele, para poder falar, mas ele foi mais rápido...
- O que houve? Você faz idéia do que eu senti... - começou ele, angustiado.
- Eu sei, eu sei... Acredite, eu não queria te fazer temer pela minha vida novamente, mas... desta vez foi preciso... Desta vez... a Helene já era!... Ela quase me matou, mas... agora acabou, Léo... - eu disse, esperando uma boa reação dele.
- Eu... nunca senti nada tão doloroso antes... foi horrível... ela... ela se foi mesmo? - perguntou ele, finalmente demonstrando uma reação positiva para a notícia que eu acabara de dar.
- Sim... A não ser que ainda haja um espírito vigativo de uma freira assassinada por um padre ou sei lá... O Lar voltou a ser um lugar seguro - eu disse, me sentindo tranquilizada pelas minhas próprias palavras.
Leonardo sorriu, e finalmente começou a ficar mais calmo.
- Isso... é ótimo... Como você...? - começou ele.
- Aaaah, nem pensar! Essa história é longa demais, e eu só conto depois de um bom banho - eu disse, tirando toda a minha roupa, o mais rápido que eu pude, e correndo para o banheiro.

Eu acordei com os olhos de Leonardo me vigiando, docemente. Ele estava deitado ao meu lado, exatamente como quando eu adormecera. Me perguntei se ele passara a noite ali, estático. Eu me espreguicei e disse...
- Como alguém morto consegue ser tão lindo?
- Se eu pudesse, estaria da cor da sua calcinha agora - ele disse, sorrindo, olhando para a minha virilha. O comentário de Léo me fez puxar o edredom da cama, para me cobrir inteira. Eu vestia apenas um sutiã com estampa do ursinho Pooh, e uma calcinha vermelha da minha mãe.
- Engraçadinho... - eu disse, me aproximando dele para lhe dar um beijo.
Leonardo fechou os olhos, se concentrando, e me beijou rapidamente, me fazendo despertar por completo, depois que o seu frio envolveu o meu corpo.

Durante o dia inteiro, eu me senti presa à minha cama. Eu só saia do quarto para comer, graças à insistência de dona Olga. Quando o relógio marcou cinco horas da tarde, Olavo me ligou, perguntando se eu já estava arrumada para ir à casa de Janaína, e eu me dei conta de que havia esquecido completamente do inesperado convite de Paula. De qualquer forma, eu menti para Olavo; dizendo que já estava printa para sair, e depois que ele falou que estava saindo de casa para ir me buscar, eu desliguei o telefone e corri para o banheiro, deixando um Leonardo confuso, ainda me esperando na cama.
- O Lavinho tá vindo aqui... A gente vai dormir na casa da Ína, hoje. Eu tinha me esquecido, desculpa - eu disse, enxugando rapidamente o cabelo, largando a toalha em cima da minha cama, ao lado de Leonardo.
- Sei... Bem... divirta-se, ok!? - disse ele, parecendo forçadamente feliz.
- Eu vou voltar cedo amanhã, prometo... - comecei.
- Não, por favor... Não se preocupe comigo, Carol... - ele disse, baixando a cabeça, e partindo o meu coração.
Eu vesti uma calça jeans desbotada, o meu All Star vermelho e a primeira blusa cavada que eu vi no meu cabide, e comecei a arrumar a minha bolsa com algumas roupas de reserva. Eu passava perfume, quando a minha mãe entrou no quarto, acompanhada de Olavo.
- Seu amigo estranho chegou - disse dona Olga, com uma cara que era o posto da felicidade.
- Oi, Lavinho... Mãe, pode descer agora, amor - eu disse, lançando um olhar de censura para Olga, antes que ela cometesse mais outra indelicadeza contra Lavinho, de quem ela não era muito fã.
- Só o que me faltava... - resmungou Olga, retirando-se.
- Sua mãe continua uma gracinha - comentou Olavo, fechando a porta do quarto.
- Pois é... - eu olhei para Leonardo, em cima da minha cama, olhando carinhosamente para Olavo.
- Tá frio aqui... - comentou Olavo - Espera... esse frio... é... o Léo tá aqui, não é!? - disse Olavo, em uma mistura de prazer e medo - eu sei porque... esse é o mesmo frio que eu senti no quarto da mãe da Ína, quando a gente quase se ferrou de vez...
- É... - eu comecei, sem saber como prosseguir - O Léo tá aqui sim...
Leonardo continuou olhando para Olavo.
- Diz... diz a ele que... - Olavo tentava conter as lágrimas que começavam a brotar de seus olhos - que eu sinto muita falta dele... mesmo...
- Ele tá te ouvindo muito bem, Lavinho - eu disse, começando a achar graça da situação.
- Bem... - recomeçou Olavo, dessa vez assustado - então... é isso aí cara! Eu sei que é meio gay, e tal, mas... eu... te amo muito, e... daria tudo pra poder te dar um abraço de novo...
Lágrimas desciam pelo meu rosto. Eu olhei para Leonardo, e ele me olhou de volta, acenando com a cabeça em direção a Lavinho, como se dissesse que seria melhor eu sair com ele, de uma vez. E quando olhei para Olavo, percebi que ele não conseguira mais conter o choro. Eu abracei o meu melhor amigo, e percebi Leonardo se aproximar para fazer o mesmo.
- Fique parado - eu disse, baixinho, no ouvido de Olavo, e senti o frio de Leonardo nos envolver, percebendo que Olavo sentira o mesmo, pois ele tremia em meus braços.
- Meu Deus... - sussurrou Olavo.
Eu me desprendi de seus braços, e enxuguei as lágrimas em seu rosto.
- O Léo disse que você tem razão... - comecei.
- Como assim? - perguntou Olavo, confuso.
- Esse lance foi bem gay, mesmo - eu disse, fazendo ambos, Léo e Lavinho, começarem a rir.

Lá fora, eu e Olavo esperávamos dona Olga tirar o carro da garagem, quando eu olhei para a janela do meu quarto, de onde Leonardo assistia a nossa partida. Eu acenei para ele, que sorriu timidamente para mim em resposta. A minha mãe já buzinava, furiosa, quando Olavo chamou a minha atenção para entrarmos no carro, e eu comecei a acompanhá-lo, voltando a olhar mais uma vez para a janela do meu quarto. Leonardo não estava mais lá.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Capítulo 17 - Além


Quando eu abri os olhos, a minha vista foi penetrada por uma forte luz branca, eu estava deitada sobre um chão frio e úmido. Demorei um pouco para perceber que a luz era transmitida por uma lanterna, jogada próxima a mim. Intrigada, porém, amedrontada demais para pensar em uma razão para ela estar ali, eu me movimentei para pega-la, sentindo as minhas pernas doerem devido a queda. Eu podia dizer que meu rosto estava machucado, pela dor aguda que eu sentia na área, e a nauseante sensação de sangue brotando da minha testa e nariz. O forte e misterioso mal cheiro do lugar penetrou as minhas narinas, e me fez tossir, parecia haver algo morto ali. Tremendo, e sem levantar do chão, eu peguei a lanterna, e vasculhei o lugar, lentamente, sem saber ao certo o que eu procurava. As paredes enegrecidas indicavam que houvera um incêndio ali, a escuridão era assustadoramente densa, devido à profundidade da câmara. Por um momento eu havia esquecido de Janaína, tudo o que eu pensava era em arrumar um modo de sair dali, foi quando a luz da lanterna revelou algo na escuridão que fez o meu sangue gelar. Eu gritei aparavorada, recuando no chão, e largando a lanterna, ao me defrontar com o rosto de Barbara Regina, sem vida, largada em meio a sujeira e destroços do lugar. O corpo parecia estar em um avançado estado de decomposição, por isso o intenso fedor que tomava conta de toda a câmara. Eu só pude reconhecer que era, de fato, Barbara, pela farda do colégio e seu longo cabelo dourado. Seus olhos estavam revirados, inertes, e sua boca meio aberta e seca.
Eu continuei gritando, encostada em uma parede, na esperança que alguém ouvisse, e viesse me tirar dali o mais rápido possível. Foi quando eu voltei a minha atenção para uma voz familiar, que vinha da passagem, acima de mim...
- Olha, eu sei que você tava morrendo de saudades dela, mas quer fazer o favor de calar essa boca!? Ninguém vai te ouvir aí de baixo - disse Janaína, do alto.
- Você... você... Ela tá morta... - eu dizia, desesperada. Não racionava direito, e evitava olhar o cadáver ao meu lado.
- Bem notado... Mas se você pensar bem... tecnicamente, não foi eu quem a matei, mas sim a sua amiga Gabriela, não acha!? - disse Janaína, friamente.
- Helene... É você no corpo da Janaína, não é!?... Escuta... não... não é a Janaína que você quer... Você quer a mim, deixa ela em paz... - eu implorava, olhando para a imagem da minha amiga, no alto.
- Você se acha a estrela do filme, não é!? Tipo; a mocinha que vive escapando do assassino, e sempre sobrevive pras sequências!? Quem disse que eu quero você? - ela perguntou, com um insuportável sorriso no rosto.
- Mas... a Janaína não tem nada com isso tudo... - eu disse, achando super estranho o fato de estar dirigindo essas palavras para a imagem da própria Janaína.
- A sua amiga tem TUDO a ver com isso... - ela disse, enfurecida - Ou melhor... a mãe dela tem.
- O quê...? - eu disse, sem ter absorvido direito o que Helene acabara de dizer.
- Depois que eu morri... Fiquei vagando pelos corredores do Lar, com todo este... ódio dentro de mim... Procurando pelas pessoas responsáveis pela minha morte... Claro que todas elas haviam saído da escola, depois do que acontecera. Então eu fiquei aprisionada aqui, por anos, enquanto esse... esse sentimento crescia e se fortalecia dentro de mim... Eu precisava me vingar... essa seria a única maneira de sair daqui... me satisfazendo... Alguns anos se passaram, até que um dia... eu finalmente a reencontrei... Matriculando a filhinha no Lar... Paula... - o nome parecia queimar em sua garganta, tamanho era o ódio que ela aparentava sentir ao pronunciá-lo - A mãe da Janaína... A partir desse dia, a sua melhor amiga passou a ser o meu alvo principal. Apesar da minha sede de vingança, eu decidi esperar até que Janaína estivese no primeiro ano ginasial, por razões que talvez você já saiba quais... Mas então você e o seu maldito dom entraram no meu caminho... Por alguma razão, que não me interessa, você começou a me ver justamente no início deste ano, e como se não bastasse, uniu forças com a bibliotecária drogada... O fato de vocês duas poderem me ver me assustou muito, eu devo admitir... Isso atrapalhou os meus planos, e me deixou muito furiosa no início, mas... eis que o destino sorri para mim, mais uma vez... e a filha de Lúcia Machado, a pobre Gabriela, entra para o Lar... se tornando, então, o meu novo alvo. Eu passei a atormentá-la, por pura diversão... e quando finalmente consegui possuir o seu corpo... eu a usei para matar Barbara e Alycia... Não que eu tivesse, exatamente, um bom motivo pra fazer isso, sabe!? Elas simplesmente me lembravam muito a dupla dinâmica Paula e Lúcia, e isso me dava nos nervos... - ela parecia se deliciar com as memórias de seus feitos doentios - Claro que algumas coisinhas não terminaram da maneira como eu planejava, tipo; eu mesma queria ter cortado a garganta da Gabriela, mas ela conseguiu se livrar de mim por um instante e, desesperada, fez isso a si mesma... Apesar de eu ter gostado muito que você tenha presenciado o suicídio... acredito que tenha te traumatizado bastante, coitadinha...
- Como você pôde...? - foi tudo o que eu consegui pronunciar com o impacto das revelações que Helene acabara de fazer.
- A MÃE DA GABRIELA... - ela alteou a voz, tentando me calar - teve o que mereceu por ter ajudado a infernizar a minha vida, e a dos meus dois únicos amigos, Caio e Marcos... Depois que a filhinha dela se matou, eu decidi ficar fora de vista por alguns meses, pra você ficar mais vulnerável, e então eu pude atacar quem eu realmente queria, desde o início... e foi muito fácil, já que a Janaína não tem esse poder que você tem, e que a pobre Gabriela também possuia dentro de si, por mais que em menor intensidade... Mas como eu ia dizendo; a idiota da Lúcia não foi a autora de todas as coisas terríveis que fizeram contra mim nessa escola... Não... Lúcia Machado não passava de um capacho para a verdadeira rainha do Lar, no tempo em que eu estudei aqui... Paula, ela foi a grande arquiteta do planinho que acabou transformando o Refugium em um túmulo que eu compartilhei com meus amigos... - ela chorava de raiva, mas contar aquela história parecia também estar lhe proporcionando um prazer doentio.
De repente, tudo fazia sentido, e a linda garota ao lado de Lúcia Machado na foto da turma do primeiro ano ginasial de 1978, e que sempre me parecera estranhamente familiar, ganhara a face da mãe de Janaína.
- Vocês... morreram aqui...- eu disse, para mim mesma, olhando em volta de toda a câmara, imaginando o que acontecera ali.
- Acredito que a rata de biblioteca já tenha te contado boa parte da minha tórrida história de amor com a Paula, não é mesmo!?... Anita... aquela traidorasinha nojenta. Sempre se escondendo por trás daquela carinha de anjo, e de seus livros idiotas, como uma cobra esperando pra dar o bote...
- As únicas cobras nessa história toda foram você e a Paula... As pessoas ao seu redor nada mais foram do que vítimas... -comecei, desafiando-a.
- CALA A BOCA! - ela gritou, enfurecida, me assustando ao ver Janaína daquela maneira - Eu ainda não terminei... - ela se recompôs, e voltou a falar - Refugium... - ela disse, com uma espressão de puro deleite, como se estivesse lembrando de coisas boas. E eu pude perceber que ela tocava o nome cravado na parede - O nome foi pura frescura do Caio, que adorava latim... - ela sorriu, com um olhar distante, e eu quase pude sentir pena - Era para ser um confessionário subterrâneo, mas a obra foi cancelada por falta de dinheiro na época, e acabou sendo lacrada, e esquecida, por isso não tem escadas, nós usávamos uma de madeira... Eu, Caio e Marcos o descobrimos. Esse lugar foi o nosso verdadeiro lar, por vários anos... Aqui nós podíamos ser nós mesmos, sem dever nada a ninguém, sem sermos julgados pelos olhares das pessoas à nossa volta, o tempo todo... Podíamos... ficar em silêncio, por horas... E a Paula... ela acabou com tudo isso... - a raiva tomara conta de sua expressão, mais uma vez - Como último ato de vingança, ela e o seu grupinho descobriram onde o Refugium ficava, com a ajuda da Anita... e tocaram fogo no lugar, enquanto nós estávamos nele... Por um acidente, a traidora da Anita ficou presa aqui, e acabou morrendo também...
- Meu Deus... - eu estava horrorizada, não conseguia dizer mais nada. Minha mente estava em completo descontrole, várias coisas passeavam por ela naquele instante. Por um momento, quase pude entender a vontade de Helene em querer se vingar. Que modo terrível de morrer... e ao lado de seus melhores amigos. Mas, claro, aquela era a versão dela sobre a história, possivelmente envenenada pelo ódio que crescia dentro do pobre espírito.
- Agora se me dá licença... eu tenho que reencontrar uma velha amiga de escola... - disse Helene, começando a arrastar o confessionário para fechar a passagem...
- NÃO! ESPERA! POR FAVOR, HELENE...
- Calma, querida... Não precisa ter medo... Como você pôde perceber, eu te deixei uma lanterna, e uma ótima companhia para toda a eternidade... Eu não posso garantir que ela vá falar muito, pelo menos não nas primeiras semanas em que você estiver aqui... Mas eu tenho certeza que vocês vão virar grandes amigas - ela disse, com o habitual sorriso psicopata, exceto pelo fato de estar estampado no doce rosto de Janaína.
Ainda sorrindo, Helene fechou a passagem com o confessionário, enquanto eu gritava, implorando por misericórdia. Em instantes, a câmara foi totalmente envolvida pela escuridão, e pelo silêncio. A única coisa que se ouvia era o meu próprio choro. Eu nem tentara gritar, sabia que era inútil. Só me restava admitir a vitória de Helene, e apodrecer naquele lugar, junto com a resposta para o mistério em torno do desaparecimento de Barbara Regina. Eu me enconstei em uma parede, chorando histeriacamente, e tentando ao máximo ficar afastada da minha companheira de cela. A não ser que eu tivesse o poder de materializar uma escada de madeira com a força do meu pensamento, não havia maneira alguma de sair dali. O pânico tomava conta de mim, e depois de revistar o lugar inteiro com a lanterna, milhões de vezes, eu finalmente percebi o quanto aquilo era inútil, e apaguei a luz do objeto, me deitando no chão, toda encolhida, e não por causa do frio, o lugar era quente como o inferno devia ser, mas sim devido ao medo. "Então é isso!? A Helene vai vencer... - eu pensava, enquanto chorava com a face sobre o frio chão - Ela vai usar a própria Janaína para matar a Paula, e provavelmente, matar a própria Janaína depois que se vingar da sua antiga colega de classe... ou abandonar o corpo da pobre garota, e deixá-la viver com a culpa de ter matado a própria mãe, e enlouquecer por isso... E eu... Ficaria aprisionada no tal Refugium, imaginando todas essas coisas terríveis acontecendo com a minha melhor amiga, e provavelmente morrer de fome, sede, ou sabe-se lá mais o quê..." Foi quando eu escutei um forte barulho vindo da passagem acima de mim. Eu me levantei, subtamente, ligando a lanterna e apontando-a para o alto. O confessionário de madeira estava sendo arrastado novamente; uma fraca luz ia penetrando a passagem, à medida em que o confessionário era movido. Eu dei um gritinho de prazer, ao ver a face da minha salvadora.
- AMALLYA!? - gritou Olívia, do alto, aparentemente sozinha.
- OLÍVIA, OLÍVIA! EU TÔ AQUI EM BAIXO, ME TIRA DAQUI, PELO AMOR DE DEUS, OLÍVIA, POR FAVOR... - eu implorava, enquanto via Olívia erguer uma escada de madeira, que eu reconheci rapidamente como a que os zeladores usavam para trocar lampadas.
- CALMA, QUERIDA, EU TÔ AQUI, EU VIM TE AJUDAR...
A escada mal chegara ao chão, e já eu comecei a subi-la, agradecendo a Deus por não ter permitido que eu apodrecesse naquele buraco. Chegando ao topo, eu não disse mais nada antes de abraçar Olívia, como nunca abraçara ninguém em toda a minha vida, chorando feito uma criança que era acolhida pela mãe, depois de ter levado uma queda. Foi quando eu percebi que ela não estava sozinha...
- Você tá sangrando, Carol! - disse Anita, aparentando estar mais assustada do que eu. Não que isso fosse uma novidade - Meu Deus, a Helene... ela não vai parar nunca...
- É um pouco tarde pra perceber isso, querida - disse Olívia, sarcasticamente.
- A Helene... (eu tentava repôr o ar) ela... ela tá com a Janaína... na Janaína... - eu disse, ainda muito nervosa.
- Nós já sabemos de toda a história, Carol... - disse Olívia, acariciando a minha face coberta de sangue e suor, na tentativa de me acalmar.
- Eu tenho seguido a Helene, desde a conversa que você teve com a Olívia sobre ela estar de volta... Eu não podia permitir que ela fizesse com você o que fez com as outras garotas - disse Anita, demonstrando todo o seu afeto por mim, e fortalecendo o grande carinho que eu já sentia por ela. Por mais estranho que pudesse parecer, alguém nutrir qualquer tipo de sentimento por um fantasma - Eu vi quando vocês entraram no bosque, então eu as segui até a igreja, e quando ela te empurrou aí dentro, eu corri pra chamar a Olívia...
- Muito obrigada, Anita. Obrigada a vocês duas...
- É verdade? O corpo da menina Barbara... tá aí embaixo? - perguntou Olívia, dando uma espiada na passagem, e recuando ao sentir o fedor que emanava do lugar.
- Sim... Mas, infelizmente, nós não temos tempo pra tirá-lo daí, ainda. A Janaína e a mãe dela estão correndo grande perigo...
- Claro, claro. Vamos pro meu carro... Acho que você vai ter que ficar aqui, Anita... - disse Olívia.
- Nós precisamos ir até o dormitório feminino, antes. Janaína tem a cópia da chave da casa dela, guardada na bolsa, nós vamos precisar caso a Helene já tenha chegado lá... - eu disse, começando a caminhar para fora da igreja.
Olívia e Anita me seguiram, e nós nos precipitamos pelo bosque, em direção à entrada da escola.
Chegando ao dormitório, que encontrava-se em perfeito silêncio, eu corri para a bolsa de Janaína, sem me preocupar em acordar as outras meninas no lugar. Quando eu finalmente encontrei a chave dentro do bolso frontal da mochila de Janaína, agarrei-a, fortemente, com a minha mão direita e corri para o lado de fora do dormitório, onde Olívia e Anita me esperavam.
- Vamos embora de uma vez, antes que alguém nos veja... - disse Olívia, apreensiva.
- Espera! - eu parei subitamente, fazendo Olívia se estressar.
- O que foi dessa vez? - ela disse, agressiva.
- Eu preciso chamar o Olavo...
- O quê? Você enlouqueceu de vez, Carol?! - disse Olívia, tornando-se cada vez mais apreensiva com toda a situação.
- Se o pior acontecer hoje... - imaginei como seria devastador para Olavo perder suas duas melhores amigas - Olavo tem o direito de saber o que realmente aconteceu, e não uma versão mentirosa contada pela polícia, ou sei lá... Tá na hora do meu melhor amigo saber a verdade sobre mim... - eu disse, me dando conta do quanto eu realmente estava decidida a contar a Lavinho sobre o meu dom, e sobre todos os problemas que ele vinha me trazendo. Não fazia mais sentido esconder algo tão importante sobre mim, de alguém tão importante para mim. Olavo tinha o direito de saber, assim como Janaína... eu só lamentava não ter percebido isso antes.
- Tudo bem, mas anda logo! - disse Olívia.
Eu corri para o dormitório masculino, e empurrei a enorme porta, me dando conta de que aquela era a primeira vez que eu entrava naquele lugar, que não tinha diferença alguma do dormitório feminino, exceto pelo cheiro, que de primeira, me lembrou meias suadas, e pelo barulho irritante dos roncos. Eu procurei por Olavo, tentando fazer o mínimo de barulho, e o encontrei em uma cama muito próxima à janela, no outro lado do dormitório. Ele dormia sem camisa, usando apenas uma samba-canção com estampa do Bob Esponja. Era a primeira vez que eu via Lavinho sem camisa, em muito tempo, e era notável que ele havia mudado muito, devo confessar que fiquei ligeiramente entertida observando o seu abdomen magrinho, antes de acordá-lo.
- Lavinho!? - eu repetia, enquanto sacudia o seu corpo, sabendo que seria uma árdua tarefa acordá-lo, uma vez que o seu sono era super pesado - Lavinho, acorda! - eu disse, dando tapinhas leves em seu rosto.
- O quê...? Que porra é... AMALLYA!? - ele disse, espantado, e cobrindo-se com o edredon da cama.
- Shhhh, silêncio, pô! Sim, sou eu, tô precisando da sua ajuda, é urgente... - eu disse, apressando-o a se levantar.
- Mas...
- Nada de "Mas", Lavinho. Veste uma camisa, e vem comigo - eu disse, olhando em volta, para ver se alguém havia acordado.
Olavo obedeceu, um pouco irritado por ainda estar com sono. Assim que ele vestiu uma camiseta regata, amarela, eu peguei a sua mão com força, e nós dois saímos do dormitório.
- Vai me explicar o que tá rolando, ou não!? - ele disse, impaciente.
- Prontos para ir? - perguntou Olívia, aproximando-se subitamente de nós, assustando Olavo, que não havia notado a sua presença.
- Mas o quê...? - começou Olavo.
- Estamos sim, Liv - eu respondi à pergunta de Olívia - Eu te explico no caminho - eu disse, dirigindo-me à Olavo.

Estávamos todos no carro de Olívia, um velho Fiat Uno Mille vermelho, rumo à casa de Janaína, e Olavo olhava para mim como se procurasse uma maneira educada de dizer que eu havia perdido a cabeça. Sim, eu acabara de contar quase tudo a ele, tendo guardado em segredo apenas a parte em que o fantasma de Leonardo estava no meu quarto, naquele exato momento, provavelmente, morrendo (de novo) de preocupação por minha causa.
- Isso tudo é... muita loucura... Você não pode pedir que eu acredite numa história dessas tão facilmente... - disse Olavo, parecendo preocupado comigo.
- Não importa se você acredita ou não, Lavinho... Eu só achei que você, mais do que ninguém, tinha o direito de saber - Eu disse, me sentindo estranhamente aliviada por ter compartilhado o meu segredo com Lavinho - A casa é essa com o jardim de girassóis, Liv - eu disse, ao perceber que nos aproximávamos da casa de Janaína.
- As luzes estão todas apagadas... - Comentou Olívia, apreensiva.
- Isso não é bom... - eu disse, saindo do carro, antes mesmo de Olívia estacioná-lo apropriadamente.
- Espera, Amallya! - disse Olívia, enquanto estacionava o carro, próximo à cerca de madeira, que antecedia o jardim.
A rua em que Janaína morava possuia uma ótima iluminação noturna, e era, notavelmente, muito nobre. Todas as casas eram enormes, luxuosas, e não muito diferentes umas das outras, a de Janaína não ficava de fora desse padrão, o jardim, no entanto, dava à residência um certo destaque com relação as outras. Eu corri pela calçada ladeada de girassóis, em direção à porta dupla, de entrada da casa, girando a chave na fechadura, e abrindo-a, sem pensar duas vezes. A casa estava perfeitamente silenciosa, e escura; a única luz acesa era a de um lindo abajour em forma de bailarina, sobre uma mesinha ao lado do sofá de curva, na sala de estar. Eu podia sentir a respiração cautelosa de Olavo, atrás de mim. Olívia foi a última a entrar, e tentava fazer o minímo de barulho possível ao trancar a porta.
- A casa não parece ter sido invadida... - comentou Olavo, baixinho.
- A Helene estava no corpo da Janaína, se ela entrou, fez isso facilmente, não acha!? - eu disse, no mesmo tom de voz dele, olhando em todas as direções, tentando detectar o menor sinal que denunciasse alguém à espreita, na escuridão.
- Não tem ninguém aqui embaixo... - sussurrou Olívia, que de todos parecia ser a mais tranquila - Vamos subir, devagar - ela tomou a frente, envolvendo a mim e a Olavo, com os braços para trás, como se estivesse nos protegendo com enormes asas, enquanto suabíamos a escada (ornamentada, tanto nos degraus; cobertos com um imenso carpete vermelho, quanto no corrimão; pintado de dourado) que nos levaria para o andar de cima, onde ficavam os quartos.
Chegando ao fim da escada, havia um corredor , iluminado por outro abajour sobre um console, com um imenso espelho atrás do luxuoso móvel. À nossa direita havia uma porta entreaberta, e uma fraca luz era emitida de dentro do cômodo, assim como um barulho ilegível. Sem exitar, Olívia entrou no quarto, fazendo sinal para que eu e Olavo a seguisse. O barulho vinha da TV, sintonizada em um canal que transmitia "All about Eve" com a Bette Davis, um dos meus filmes favoritos. No quarto havia uma enorme cama de casal, coberta com um edredom branco, ligeiramente bagunçado. Olívia parou, bruscamente, ao se deparar com a presença de uma mulher alta, e de uma beleza hipnotizante, trajando um longo roupão de seda roxo. A mãe de Janaína estava de costas para a enorme porta de vidro da varanda do quarto, decorada com uma uma cortina em um tom ligeiramente cinza, que se movia fantasmagoricamente, de acordo com o vento que entrava por uma brexa da porta meio-aberta. A mulher nos encarava de uma maneira, no mínimo, inesperada; não havia medo em seu olhar, e ela parecia mais curiosa do que surpresa com a nossa "invasão". A luz da lua, que invadia a varanda atrás dela, contornava o seu corpo, deixando o seu rosto sombreado, e dando a ela uma expressão assustadora, injusta para a sua beleza.
- Quem são vocês?... O que estão fazendo em minha casa?... - ela perguntou, finalmente demonstrando alguma indignação.
- Senhora... nós viemos te ajudar... - começou Olívia, parecendo nervosa.
- Não se lembra de mim, Paula? - eu perguntei, estranhando o fato de Paula não estar reconhecendo a melhor amiga da própria filha, e que há anos quebrara um precioso objeto de decoração que lhe pertencia - Eu sou amiga da Janaína...
- Como vocês entraram aqui? - perguntou a mulher, que começava a ficar enfurecida.
- Calma, Paula, nós podemos explicar... Sobre a sua filha... - começou Olívia, tentando acalmar a mãe de Janaína.
Por um instante, eu desviei a atenção da estonteante mulher, e olhei para a porta do banheiro, (ao lado da estante em que estavam a TV e alguns livros) prendendo a respiração ao ver que um pé humano e pálido, a mantinha entreaberta. Por um flashe de momento, eu me dei conta de que a pessoa jogada no chão do banheiro era Janaína...
- OLÍVIA! - eu gritei, institivamente, e tudo o que aconteceu depois, foi muito rápido...
Olívia desviou a atenção para a porta do banheiro, dando a oportunidade para Paula puxar uma faca de cozinha, escondida dentro do roupão, e atacá-la, subitamente, com uma apunhalada no braço direito, fazendo Olívia libertar um grito abafado, de dor e espanto.
- NÃÃÃO! - gritamos eu e Olavo, ao vermos a trágica cena.
Olívia despencou no chão com a dor, e Paula correu em direção a Olavo, arremeçando-o com uma força incrível contra a parede próxima à porta do banheiro, me agarrando fatalmente pelo pescoço, em seguida. Eu pude reconhecer a fúria de Helene nos olhos de Paula, que apertava o meu pescoço com uma das mãos, e segurava a faca de cozinha (banhada com o sangue de Olívia) com a outra. A sua força com uma única mão era incrível, eu tentava me livrar de suas garras, mas era inútil.
- Você se intrometeu em meus planos, pela última... vez - disse Paula. Seus olhos queimavam de prazer e fúria.
Suas unhas cortavam a minha pele, tamanha era a força com que ela apertava meu pescoço. Helene estava decidida a me matar, mas eu não estava disposta a desistir da minha vida tão facilmente...
E eu senti... senti uma estranha e poderosa vibração que emanava de dentro de mim... de dentro da minha alma... algo que poderia salvar a minha vida. Eu olhei para Olívia, que sangrava caída sobre o chão, porém ainda consciente, olhando de volta para mim. E com um simples toque em sua testa, a minha amiga ferida não me deixou dúvida alguma sobre o que fazer em seguida...
- Não... se preocupe... - eu me esforçava para falar, por mais que a dor me impedisse - você não vai me ver novamente, Helene... - eu disse, tão furiosa quanto a própria Helene.
Eu pus minhas duas mãos sobre a testa de Paula, deixando aquela estranha força que crescia dentro de mim, me tomar por inteira, sem pensar sobre o que era, ou o que faria comigo. Eu ouvi um grito de dor, e por um segundo, fui sugada para uma atmosfera pacífica, iluminada por uma densa luz branca, como a luz do sol. Parecia ser outra dimensão, eu flutuava no ar, me perguntando aonde eu estava, até retornar para a tensão no quarto de Paula, quando eu senti o meu corpo ser, violentamente, arremessado no chão. Ainda atordoada, eu olhei em volta do enorme quarto, me desesperando ao ver Olavo parcialmente inconsciente, e Olívia desmaida, próxima à Paula, que se contorcia de dor.
- Você não pode me tocar, Helene... - eu disse, me levantando do chão, conforme a dor nas minhas costas me permitia - É hora de desistir...
Paula agora possuia marcas, que lembravam arranhões, em seu lindo rosto - "Teria eu feito isso com ela?" - me perguntei, sentindo-me culpada por talvez ter machucado a mãe de Janaína.
Com os cabelos caindo sobre o rosto ensanguentado, Paula me olhou de forma ameaçadora, como se fosse voar para cima de mim, mais uma vez. Eu tentei manter-me firme, disfarçando o medo que sentia. No entanto, Paula não me atacou; o corpo da pobre mulher se contorceu, violentamente, para trás, enquanto ela libertava um terrível grito de dor, até, aparentemente, desmaiar. Por um momento, eu entendi o que Helene pretendia, e fui incapaz de impedí-la. A porta do banheiro foi aberta com violência, fazendo um barulho que ecoou por todo o quarto, e Janaína saiu de lá, mais uma vez sob o domínio de Helene, pegando a faca, próxima ao corpo de Paula. Quase que institivamente, eu me aproximei da mulher insconsciente, na intenção de protegê-la.
- Desista, Helene... - eu disse, debruçada sobre o corpo enfraquecido de Paula, olhando fixamente para Janaína.
- Helene...? Carol, sou eu... Ína... - disse Janaína, calmamente, com um semblante que não pertencia a ela - Não tá reconhecendo a sua melhor amiga? - Janaína sorriu, maliciosamente, deslizando a faca de cozinha pelo próprio pescoço, abrindo, de repente, um corte na área da garganta, libertando um fino jorro de sangue que deslizou pelo seu pescoço e seio, até a sua camisola.
- PARE, HELENE! - eu gritei, desesperada.
Janaína parou a faca sobre o corte recente, e me olhou, parecendo se divertir...
- Ok... - ela disse, finalmente tirando a faca do próprio pescoço - Vamos fazer um simples trato, então... e você não vai poder recusar... - ela disse, em tom de ordem - Me dê a Paula... e eu deixo você e a sua amiguinha em paz - ela disse, passando a deslizar a ponta da faca sobre o próprio seio.
De relance, eu olhei para Olavo, que aos poucos começava a recobrar a consciência, e logo depois para Olívia, que se erguia do chão, devagar, pressionando o ferimento no braço, aproximando-se sorrateiramente de Janaína. Percebendo o que ela pretendia fazer, eu tentei ganhar tempo...
- Será que você não se cansa de manchar as mãos com sangue inocente, Helene!?... - comecei, conseguindo ganhar a atenção dela - Primeiro foram os seus dois melhores amigos; o Caio e o Marcos...
- Eu não vou hesitar em matar outra amiguinha sua, Amallya... NÃO ME PROVOCA!- ela gritou, enfurecida, voltando a pôr a faca no próprio pescoço.
- Os dois, assim como a pobre da Anita, não tinham nada a ver com a briguinha infantil entre você e a Paula, e acabaram morrendo...
- CALA A PORRA DA SUA BOCA! - ela gritou, aos prantos, batendo na própria cabeça com as mãos, como se tentasse se livrar de memórias que a atormentavam.
- E a culpa não foi da Paula, Helene... Você transformou uma simples birra entre colegiais, em uma doentia busca por vingança...
- NÃO! NÃO! NÃO!...
- Você os matou... ... você.
A fúria de Helene havia alcançado o seu limite; pocessa de raiva, ela tentou correr em minha direção, quando Olívia a surpreendeu pelas costas, jogando-a rapidamente contra a estante com a TV e os livros, e pressionando a testa de Janaína com as duas mãos, fechou os olhos, concentrando-se em banir Helene do corpo da minha amiga, e deste mundo, de uma vez por todas. Janaína agonizava de dor; era Helene lutando contra os poderes de Olívia, lutando para permanecer entre nós, mas a luta já estava ganha, eu só me preocupava com os danos que aquilo causaria à minha amiga. Eu corri para socorrer Olavo, que via toda a perturbadora cena, escorado em uma parede, próxima à porta de vidro da varanda. Eu o abracei, perguntando se estava tudo bem, ele não respondeu nada; assim como eu, continuou observando a luta que era travada bem na nossa frente. Os gritos de Janaína ecoavam assustadoramente pelo quarto, mas um outro barulho, quase imperceptível, subitamente me chamou a atenção; bem atrás de mim, eu podia ouvir o vidro da porta da varanda estalando, e aos poucos, pequenas rachaduras iam se formando nele...
- Olívia...? - eu disse, tentando alertá-la sobre a porta de vidro, que começava a rachar de forma ameaçadora, e inexplicável. Olívia não respondeu, parecia estar em outro lugar, talvez o pacífico lugar onde eu estivera por um milésimo de segundo, quando entrei em contato com o espírito de Helene. Quando eu olhei novamente para a porta, as rachaduras haviam aumentado tão rapidamente, que só deu tempo de me afastar com Olavo, quase empurrando-o, antes que a enorme porta de vidro explodisse em milhões de perigosos cacos. Olívia foi derrubada pelo impacto da explosão, enquanto Janaína ficara jogada no chão, coberta por cacos de vidro em variados tamanhos. Haviam cortes por todo o seu lindo rosto, e a garota estava completamente inconsciente. Eu ia ajudar Olívia, quando ela, com um pouco de dificuldade, se levantou por conta própria. O profundo corte em seu braço ainda sangrava de forma preocupante.
- Eu estou bem... É com ela que vocês devem se precocupar... - disse Olívia, ofegante, apontando para Janaína, que ainda estava inconsciente.
Eu me aproximei da minha melhor amiga, um pouco receosa de que ela ainda estivesse sob o domínio de Helene...
- Ína...? Você tá bem? - eu perguntei, acariciando o rosto ensanguentado de Janaína.
- Ela vai ficar bem... - disse Olívia, acariciando o meu ombro e o de Lavinho, tentando nos consolar - só precisa descansar... Ser hospedeiro de um espírito como a Helene pode ser uma experiência muito perigosa... O ódio que Helene carregava dentro de si era muito poderoso... - ela olhou para a porta de vidro estilhaçada - e isso afetou a Janaína também...
- Então acabou!? A Helene foi mandada de volta para... seja lá de onde aquela maldita retornou...? - eu perguntei, esperançosa, como eu não me sentia hávia muito tempo.
- Sim... A Helene retornou para o Além... da pior forma possível, mas retornou... Ela nunca encontrará a paz que outros espíritos merecem ter quando vão para o outro lado... Acredito que ela está condenada a ser um espírito eternamente atormentado pelo próprio ódio que carrega consigo...
- E pela culpa... - eu pensei alto, interrompendo Olívia.
Nós três ficamos em silêncio, obeservando Janaína, até Olívia tomar a iniciativa de tentar erguer a pobre garota, e colocá-la sobre a cama do quarto, com a minha ajuda e a de Olavo. Uma vez tendo colocado Janaína e Paula, uma ao lado da outra, sobre a imensa cama de casal, nós cobrimos as duas com o edredon, e nos retiramos do quarto, apreensivos. Eu e Olavo nos sentamos em um dos sofisticados sofás da sala de estar, minuciosamente decorada, enquanto Olívia ficou de pé, escorada no corrimão da escada, de frente para nós. Ela enrolava um lençol branco, tirado do guarda-roupa de Paula, em volta do corte no braço, no intuito de conter o sangramento.
- Não seria melhor a gente chamar um médico? - perguntou Olavo.
- E ter que explicar toda esssa bagunça!? Eu acho que não! Além do mais, não vai ser necessário... O dano maior não foi causado contra a saúde física, mas sim contra a alma delas, envenenadas pelo ódio de Helene. Logo elas estarão bem...
- A Janaína vai se lembrar de algo? - perguntei, preocupada com a saúde mental da minha amiga.
- Eu receio que não... Mas uma conexão com um espírito como a Helene, é o tipo de coisa que pode deixar muitas cicatrizes internas, Carol... Futuramente ela pode precisar da ajuda de amigos para curá-las - disse Olívia, olhando profundamente para mim e para Lavinho.
- Ok, mas os seus ferimentos não foram internos, Liv. Você não pode continuar sangrando desse jeito... Eu vou pedir uma ambulância - eu disse, preocupada com o estado de Olívia.
- É muita gentileza da sua parte, Carol, mas eu nunca me senti tão bem em toda a minha... - Olívia começou, tirando a mão do corte, por um segundo, permitindo que o lençol usado para fazer pressão, caísse, revelando um jorro de sangue sem fim.
Ao ver, de relance, o sangramento descoberto, Olívia revirou os olhos, ameaçando desmair. Sorte que eu e Olavo corremos para sustentar a corajosa bibliotecária, à tempo.
- Mudou de idéia? - perguntei, enquanto ajudava Olavo a apoiar Olívia nos ombros.
- É, acho que vocês me convenceram... - disse Olívia, ainda um pouco tonta.
Eu peguei o telefone sem-fio, que estava em uma mesinha ao lado do sofá onde eu sentava, e liguei para a emergência, explicando a gravidade da situação, e enfatizando o quão rápidos eles precisavam ser. Inventei que Olívia era a minha mãe e que havia sido esfaqueada por um homem, aparentemente drogado, que invadira a casa, na intenção de levar algo de valor. A história parecia ter incentivado a rapidez deles, ou o posto de saúde que recebeu a ligação era incrivelmente perto da casa de Janaína, porque em exatos dez minutos, dois homens, ligeiramente bonitos e vestidos de branco, batiam na porta da casa.
- Não esqueçam: para evitar confusão, vocês precisam voltar para o Lar, e entrar em seus respectivos dormitórios, sem serem percebidos, e claro, antes da bruxa superiora aparecer para a inspeção diária, ok!? Eu sei que pra você isso não vai ser difícil, certo, Carol!? - disse Olívia, baixinho, já começando a ser guiada pelos dois homens até o barulhento carro.
- Você me conhece, fica tranquila... e se cuida, Liv - eu disse, me despedindo de Olívia, que saia da casa, mandando um beijo com o braço ferido, se arrependendo, profundamente, depois.
Depois de trancarmos a casa, eu e Lavinho subimos para o quarto onde Paula e Janaína descansavam, e ficamos sentados no chão, ombro a ombro, de frente para a cama de casal, onde mãe e filha dormiam. Eu deitei a minha cabeça no ombro de Lavinho, evitando o sono que já teimava em chegar, e assim ficamos em silêncio por alguns minutos.
- Carol...? - disse Lavinho, quase sussurrando em meu ouvido, com a intenção de não me acordar, caso eu já estivesse dormindo.
- Oi - eu respondi, achando graça na atitude fofa de Olavo.
- Posso te perguntar uma coisa? - ele disse, meio envergonhado.
- Você acabou de fazer uma pergunta, não vejo razão pra não te deixar fazer outra - eu disse, tirando a cabeça do ombro de Lavinho, para olhá-lo de frente.
- Por que raios você decidiu esconder esse lance de ver espíritos, logo de mim e da Ína? - ele disse, em um leve tom de indignação.
- Eu não sei ao certo... - comecei a tentar responder, me sentindo envergonhada - Talvez... porque vocês poderiam achar que eu tava maluca, ou... simplesmente porque eu não queria arrastar vocês dois pra toda essa bagunça que a minha vida havia se tornado, desde que eu descobri que eu sou um tipo de Caça-fantasmas...
- Nós somos seus melhores amigos, Carol! A gente ia te dar força... e te internar, claro, mas sempre pensando no seu bem... - brincou Lavinho, me fazendo rir, mesmo em um momento como aquele.
- E eu ficaria muito grata, pode acreditar - eu disse, bagunçando o seu cabelo, super lisinho, o oposto do de Léo.
Ele riu, e me encarou novamente...
- Posso te fazer outra pergunta? - ele disse, mudando totalmente a sua expressão, ficara mais sério.
- Vai nessa - eu disse, me preparando.
- Você já... viu o Léo alguma vez... quer dizer... o espírito dele? - ele perguntou, receoso.
Eu deveria estar esperando por aquela pergunta, mas Olavo me pegara totalmente despreparada. Eu fiquei olhando para ele, que pareceu perceber o quanto a pergunta me assustara, pois desviou o olhar, quase com vergonha. Eu poderia ignorar a pergunta, mas decidi que Olavo, mais do que ninguém, tinha todo o direito de saber que o espírito do seu melhor amigo ainda vagava pelo meu quarto.
- Ele está no meu quarto agora... e muito preocupado, provavelmente - eu disse, tocando o seu rosto para que ele voltasse a olhar para mim.
Por alguns segundos, Olavo não disse nada, só ficou me olhando, como se ainda reformulasse em sua cabeça o que eu acabara de dizer. Foi quando Janaína se levantou da cama, freneticamente, como quem acorda de um terrível pesadelo, fazendo eu e Olavo nos abraçarmos de medo, aos berros, em uma cômica cena.
- Meu Deus!... O que houve comigo? - ela perguntava, ofegante. Sua camisola e rosto encharcados de suor - MÃE!? - ela gritou, ao se deparar com Paula, terrivelmente ferida e inconsciente em sua cama - Gente, o que aconteceu? Por que eu tô em casa? O que houve... aqui? - ela perguntou, olhando em volta do quarto destruído.
Eu olhei para Olavo, pedindo socorro.
- Boa sorte com isso - ele disse, fugindo do meu olhar e da conversa que eu estava prestes a iniciar com uma Janaína assustada e confusa.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Capítulo 16 - Refugium



Olavo estava sentado em um banco de pedra, próximo ao bosque da escola, quando eu e Janaína nos aproximávamos para falar com ele. O dia estava particularmente lindo, o sol brilhava como nunca, e sua luz banhava as folhas das árvores do bosque, criando um efeito mágico de se olhar. Janaína estava muito nervosa, mas ela foi a primeira a falar com o amigo.
- Oi - ela disse, timidamente.
- Oi... - Lavinho respondeu, sem olhar em nossa direção.
Eu apertei forte a mão de Janaína, encorajando-a para continuar a falar.
- Será que... você poderia perdoar uma amiga que falou muita merda, foi completamente cabeça dura com você, e que se arrepende muito do que fez?
Olavo não respondeu nada, só se levantou do banco, e nos abraçou, tão forte, que nada mais precisou ser dito...
- Meus pais vão se separar - ele disse baixinho, enquanto nos abraçava, e eu percebi, com uma imensa dor no meu coração, que ele chorava. Ficamos abraçados por uns minutos, como se compartilhássemos a mesma dor.

Eu olhava para Leonardo, sentado sobre a a minha cama, obervando concentrado a paisagem além da janela do meu quarto. Por um momento eu hesitei em chamar a sua atenção, queria observá-lo ali, quietinho, absorto em seus próprios pensamentos, e tão lindo, como sempre fora. Mas ele percebeu a minha presença, e lançando um sorriso que me desmontou em mil pedaços, ele veio em minha direção.
- Oi - ele disse, muito próximo a mim. O frio que emanava dele já penetrava cada parte do meu corpo.
- Oi... - eu disse, sem olhar para ele. Tentava encontrar coragem para me desculpar pela maneira fria com que eu vinha tratando ele - Eu queria que você me desculpasse...
- Pelo quê? - ele perguntou, serenamente.
- Eu tenho sido uma idiota desde... Eu não tenho te tratado bem, e...
- Você não precisa se desculpar por nada... - ele disse, beijando levemente os meus lábios, em seguida - Eu tenho sido muito egoísta, esse tempo todo, se alguém tem que se desculpar aqui, sou eu...
- Não, Léo...
- Eu tenho sido um egoísta, te impedindo de usar o seu dom para ajudar outras pessoas, e eu queria te dizer que... eu sinto muito orgulho de você por ter tentado ajudar a Gabriela...
Eu senti as lágrimas descerem pelo meu rosto.
- Eu não consegui salvá-la...
- Mas eu tenho certeza que você fez tudo o que estava ao seu alcance... Droga! Queria tanto poder te dar um abraço - ele disse, parecendo realmente muito triste por não poder me consolar mais.
Resolvi tentar parar de chorar, para diminuir a sua angústia.
- Você tem razão... Obrigada por tudo, Léo, e mais uma vez... Me desculpa... - eu disse, tentando ao máximo esconder dele, o quanto eu ainda me sentia culpada pelo fim de Gabriela - Eu vou tomar um banho - eu disse, ainda predendo o choro, deixando Leonardo com uma expressão triste em seu rosto, próximo à janela do meu quarto.
Com o tempo, eu decidi que aquela era uma culpa que eu estava condenada a carregar sozinha, em silêncio, pelo resto da minha vida.

Minha mãe se preparava para uma viagem ao Nordeste, onde ela iria visitar a minha avó, e sua mãe, a simpática dona Angélica, naquele sábado. Depois de ter preparado uma mala para dois dias, ela foi ligar para o meu pai, que deveria vir me buscar para passar o fim de semana com ele...
- Já se passaram dois meses desde a última vez em que ela te viu[...] Não! Não vem com esse papo de trabalho[...] E desde quando essa VAGABUNDA se tornou mais importante pra você do que a sua própria filha?[...] quer saber!? VAI SE FUDER, MÁRIO! Eu realmente espero que quando você tiver um filhote com essa cadela, ele receba toda a atenção que uma criança merece receber do pai. Não! Espera! Pra falar a verdade: EU NÃO DOU A MÍNIMA PRA VOCÊ OU PRA QUALQUER ABERRAÇÃO QUE ESSA VADIA PARIR!
Olga enfiou o tefone de volta no gancho, e por um momento eu pensei que ela havia quebrado o objeto. Mamãe respirou fundo, parecia estar pocessa de raiva. Depois de um tempo, ela voltou-se para mim, e tentando aparentar o máximo de serenidade, disse...
- Querida... Eu acho que você vai ter que ficar sozinha durante esse fim de semana... Mas não se preocupe, eu vou deixar dinheiro pra você comer fora e... vou tentar voltar o mais rápido possível no domingo, ok!?
Acho que nem pessoas que ganham na mega-sena ficam tão felizes como eu fiquei ao ouvir aquelas palavras. Eu nunca tivera a chance de ficar sozinha em casa por tanto tempo, e tal oportunidade me dera a idéia de chamar Olavo e Janaína para uma "festa do pijama". Sim! O nosso conceito de "festa do pijama" era muito diferente do que as pessoas estão acostumadas. Por exemplo; esse lance de ser uma coisa só de meninas não se aplicava à festa do pijama idealizada por mim, Olavo, Leonardo e Janaína; dormir estava fora de cogitação, e ao invés de leitinho morno com chocolate em pó, nós bebiamos vodka com refrigerante. Claro que depois de dois copos da bebida, todos, principalmente Janaína, se mostravam um pouco mais, como eu posso dizer?... transparentes... é, acho que é esssa a palavra certa: "transparentes"...
- Ok, ok... querem saber? Não tem nada de nojento nisso... - começou Janaína, virando mais um copo, o terceiro dela naquela noite, em meio às nossas gargalhadas - Eu... já fiz sexo oral no meu primo...
- Safada! - eu disse em tom de brincadeira.
- Huuum, a conversa tá ficando interessante - comentou Lavinho, nos fazendo rir ainda mais.
- Ah, gente... é algo muito normal, e eu não me arrependo de ter feito...
- Mas... sei lá, é um pênis, Ína, na sua boca... pênis são nojentos... - eu dizia, fazendo cara de nojo.
- Concordo! - exclamou Olavo.
- Quer dizer que você nunca fez um boquete no Léo? - perguntou Janaína, e todos nós rolamos pela minha cama, rindo sem sabermos exatamente do quê.
- Não, claro que não... - eu olhei para Leonardo, que nos observava, também aos risos, próximo à porta do meu quarto. Ele me deu um sorriso, pronunciando a palavra "mentirosa", labialmente. Eu dei outro sorriso, e voltei para a conversa com Olavo e Janaína.
- Não foi o que eu ouvi... - comentou Janaína, ainda rindo.
- Eu também já fiz sexo oral em uma prima minha, mas... ela pediu pra parar porque tava fazendo cócegas - comentou Olavo. A sua voz já estava afetada pela bebida.
- Alguém precisa te ensinar a fazer sexo oral, amigo... - disse Janaína, começando a rir de Olavo.
Eu exagerei tanto na risada dessa vez, que acabei caindo da cama, fazendo Olavo e Janaína quase sufocarem de tanto rir.
Quando a bebida nos derrubou, ficamos deitados os três em minha cama, olhando o sol nascer através da janela, ainda balbuciando algumas coisas sem o menor sentido, e rindo a toa. Depois que Janaína pegou no sono e começou a babar no meu braço, estávamos somente eu e Lavinho acordados, eu procurava por Leonardo no quarto, mas não o via em lugar algum.
- Você se lembra da última vez que bebemos juntos? - perguntou Lavinho, que estava deitado ao meu lado, a minha cama não era tão grande, por isso nós três tivemos que ficar muito apertados.
- Acho que sim, foi... Na casa do Léo, quando os pais dele viajaram pra comemorar o aniversário de casamento, ou algo do tipo... - eu dei uma risada ao me lembrar daquele dia - Você lembra que a Janaína tentava me beijar o tempo todo, e... - outra risada - eu tava tão de saco cheio que peguei ela e tasquei um beijo, eu mesma... - nós dois começamos a rir juntos - daí ela olhou pra mim com uma cara super estranha e disse: "Carol... Eu te acho super gata e tal, mas... eu e você nunca vamos ser nada além de grandes amigas" - mais risos - Tipo, ela que tava louca querendo me beijar e quando eu finalmente dou um beijo nela... - nós rimos por alguns segundos, e depois paramos, para recuperar o fôlego, voltando a admirar o nascer do sol.
- Eu sinto falta dele... - disse Lavinho, com um olhar distante, para além da janela, e eu sabia que ele estava falando do Léo.
A amizade de Leonardo e Olavo, certamente, era algo muito forte e que ia além da minha capacidade de imaginar o quanto. Eles moravam na mesma rua, desde pequenos, cresceram juntos, e eram tão inseparáveis que a mãe de Leonardo foi obrigada a matricular o filho na mesma escola que o amigo.
- Eu posso imaginar... - eu disse, olhando para o meu melhor amigo. Seus olhos começavam a lacrimejar.
- Quando os meus pais tiveram a primeira briga séria, tipo... coisas quebrando pela casa, e tal... O Léo apareceu no meu quarto, dizendo que queria me tirar de lá... Ele entrou escondido dos meus pais, acredita?... A gente saiu de casa correndo e fomos jogar bola, na quadra da rua... Eu dormi na casa dele aquela noite, claro que foi o primeiro lugar pra onde a minha mãe ligou quando deu pela minha falta... A mãe do Léo tentou acalmá-la, e a convenceu de me deixar passar a noite lá... Claro que aquilo não tornou as coisas mais fáceis, quando eu voltei pra casa... Mas significou muito pra mim, sabe?... A partir daquela noite eu me convenci de que nunca iria ter outra amizade que nem a do Léo... Não é o tipo de coisa que se encontra facilmente, sabe?... - disse Olavo, lutando contra a própria vontade de chorar.
Eu dei um beijo em seu rosto...
- Eu sei... - eu disse, olhando-o fixamente.
Olavo me encarou de volta, seu olhar ainda parecia muito triste. Nós ficamos nos admirando por alguns segundos, e quando a sua expressão mudou, eu me lembrei do possível interesse que o meu melhor amigo tinha por mim, o que me fez desviar o olhar, rapidamente, pretendendo não causar uma falsa impressão, caso ele estivesse realmente nutrindo algo mais forte que um sentimento de amizade por mim.
- Eu... vou dormir no sofá... - eu disse.
- Não, por favor, a cama é sua... - disse Olavo, parecendo envergonhado.
- Não, Lavinho, por favor... Fica aqui, eu... não consigo dividir a cama, frescura minha, fica à vontade, tá!? - eu disse, me retirando rapidamente do quarto.
Eu nunca havia pensado em Lavinho como algo além de um amigo, e começar a pensar nisso me assustava de um jeito que me forçava a mantê-lo o mais longe possível de mim. Eu nunca soube lidar muito bem com os meus próprios sentimentos, na maioria das vezes, tenho muito medo deles, principalmente daqueles que eu não consigo controlar.
Eu me joguei no sofá, com a cabeça enterrada em um dos travesseiros, para sufocar uma estranha vontade de chorar, "talvez seja a bebida!" - pensei - "talvez você esteja se apaixonando pelo seu melhor amigo" - pensei novamente, e quando menos percebi, estava encharcando o travesseiro com as minhas lágrimas - "nunca mais eu ponho uma gota de bebida alcoólica na boca" - eu pensei, começando a rir da minha própria mentira, caindo no sono, repentinamente.
Na manhã seguinte, eu fui a primeira a despertar, minha cabeça latejava e o meu corpo inteiro parecia prostestar pelos exageros da noite passada. Depois de me espreguiçar, eu me arrastei feito uma morta-viva até a cozinha, consciente de que teria que preparar um café da manhã para três. Eu dei uma olhada para o fogão, e pensei: "aaah, foda-se! Eu não vou preparar esse café sozinha". Subi até o meu quarto, e chegando lá, pulei em cima de Olavo e Janaína, que não gostaram nenhum pouco daquilo...
- Porra, Carol! Tá maluca!? Tem medo de morrer, não!? Nem a minha mãe é louca de me acordar quando eu tô de ressaca... - Protestou, Janaína, me surrando com um dos travesseiros da cama, enquanto Olavo fazia o mesmo com o outro travesseiro.
- Ah, gente, eu fui até a cozinha pra preparar o café da manhã e pensei: "Eu não vou ter toda essa diversão sozinha. Vou chamar meus dois melhores amigos para me ajudarem"...
- É? Engraçadinha! Nós somos visitas, você deveria trazer o nosso café da manhã em uma bandeja... - começou, Lavinho.
- Cala a boca que "visitas", aqui em casa, vocês dois não são mais faz tempo, seus folgados! - eu puxei o edredom com toda a força que pude, fazendo Olavo e Janaína cairem no chão.
Eu olhei para o lado, e vi Leonardo, que acompanhava toda a cena, rindo. Claro que eu também não resisti e comecei a rir. No chão, Olavo e Janaína me xingavam, e soltavam altas gargalhadas ao mesmo tempo, acompanhadas de gemidos de dor, devido a pequena queda. Inesperadamente, eles se levantaram e começaram a correr atrás de mim pela casa inteira, querendo vingança.
- Volta aqui, Carolsinha! - dizia Olavo, enquanto me perseguia na sala da casa.
- Eu quero ver se você vai rir quando eu te pegar! - disse Janaína, tentando me alcançar.
Quando Olavo conseguiu se aproximar de mim, me agarrou pela cintura, e me jogou no sofá. Os dois começaram a fazer cócegas em mim, até eu quase fazer xixi na roupa.
Na cozinha, nós preparamos três mistos quentes, e Janaína fez o café dela, que eu e Olavo tanto bajulávamos. Quando tudo estava posto na mesa, eu corri para a sala e coloquei o primeiro albúm do Kid Abelha para tocar.
- Caraaaalho, esse café tá muito bom, Ína! - comentou Olavo.
- Muito foda! - eu disse, de boca cheia.
- E vocês são dois puxa-sacos - disse Janaína.
Leonardo nos observava, dessa vez aparentando tristeza. Fiquei preocupada com ele, mas decidi abordá-lo para uma conversa, depois do café da manhã.
- Nossa, tá fazendo muito frio aqui, não acham? - comentou Olavo.
Eu olhei para Leonardo, sabendo que a presença dele era a razão para o frio constante.
- É verdade - concordou Janaína, tentando aquecer os braços com as mãos.
- Eu não tô sentindo, vocês devem estar doentes, ou sei lá... Me passa o café, Ína - eu disse, tentando mudar o foco da conversa, e quando olhei novamente para onde Leonardo estava, percebi que ele havia sumido.
Quando a minha mãe telefonou, por volta das dez da manhã, avisando que estava voltando para casa, Olavo e Janaína começaram a se preparar para irem embora. De onze horas eu os deixei na parada de ônibus mais próxima, e voltei sozinha para casa, ansiosa para conversar com Leonardo. Assim que cheguei, fui direto para o meu quarto, onde Leonardo estava na janela, de costas para mim.
- Você tá legal? - perguntei, me aproximando dele.
- Tô sim... Não precisa se preocupar - ele respondeu, permanecendo de costas.
- Você parecia meio triste na cozinha... Foi uma má idéia ter trazido o Lavinho e a Ína pra cá? - perguntei.
- Claro que não! - ele disse, firmemente, voltando-se para mim - É só que... Ver vocês três juntos, se divertindo como a gente costumava fazer... Sei lá... eu fiquei triste por não poder fazer parte da vida de vocês...
- Droga! Eu fui muito egoista, eu deveria saber que... - comecei.
- Não, Amallya! Foi uma ótima idéia trazer os dois aqui. Ou você acha que eu não gostei de rever meus melhores amigos? - ele me repreendeu, me deixando envergonhada por ter pensado que a presença de Olavo e Janaína pudesse ter deixado Leonardo triste - É só que... Eu sinto falta de realmente estar com vocês, só isso... Você me entende? - ele me perguntou, tentando disfarçar a tristeza em seu olhar, provavelmente para não me preocupar mais.
- Eu entendo, me desculpa...
- Não precisa se desculpar, eu fiquei muito feliz em ver que vocês estavam felizes, isso basta pra mim - ele me beijou, como que tentando encerrar aquela conversa. Eu obedeci a seu pedido silencioso, e não não toquei mais no assunto.

Na segunda feira pela manhã, eu estava arrumada para ir a escola, ainda um pouco cansada por não ter dormido muito no fim de semana. Leonardo me observava, distraido, arrumar o material escolar.
- Vou indo... - eu disse, colocando a mochila nas costas - A gente se vê no sábado.
- Não se mete em encranca... ou, pelo menos tenta não se meter em encrenca, sei lá... - ele disse, esboçando um leve sorriso.
Eu me aproximei dele, e beijei sua boca, rapidamente, me deixando ser tomada pelo frio de sua aura e lábios.
- Eu prometo que vou fazer o meu melhor... Enquanto isso, tenta relaxar, ok!? - eu disse, começando a me retirar do quarto...
- Carol...? - disse Léo, me fazendo parar na porta - Eu te amo - ele disse, com um olhar um tanto apreensivo, quase como se estivesse dizendo "por favor, não vá". Eu controlei uma inexplicável vontade de chorar, e respondi...
- Eu também te amo.
Me retirei, abandonando o seu olhar desolado, com uma estranha sensação tomando conta de mim, algo que me alertava baixinho para voltar para dentro do quarto, trancar a porta, e nunca mais sair... Ficar para sempre envolvida pelo frio que emanava de Leonardo, e vigiada pelo seu olhar misterioso e acolhedor.
- CORRE, AMALLYA! OLHA A HORA! - gritou a minha mãe, pontuando a frase com uma longa buzinada do carro.
Eu tentei, em vão, calar aquele alerta que se repetia em minha mente; "Não vá, não entre naquele carro, não ponha os pés naquela escola...", e uma vez dentro do carro, eu olhei para a janela do meu quarto, a procura de Leonardo, querendo admirar o seu olhar mais uma vez (uma última vez?), e para a minha total angustia, ele não estava lá.

Na escola, a primeira coisa sobre a qual eu, Olavo e Janaína conversamos foi a nossa noite de sábado, ou pelo menos o que a gente conseguia lembrar dela, no caso de Janaína: Nada. Eu e Olavo demos muitas risadas tentando fazê-la se lembrar de uma certa confissão que ela fizera, sob o efeito de três copos de Vodka com refrigerante, envolvendo sexo oral e um certo primo dela.
- Mentirosos! Como é que vocês dois tem a coragem de insinuar que eu fiz um boquete no meu primo!? - protestou Janaína, e seu sorriso denunciava que nem a própria estava botando fé no que dizia.
- Engraçado, há um dia atrás você estava se gabando do quanto era experiente nesse departamento - disse Olavo, me fazendo quase chorar de tanto rir.

Durante o intervalo, eu e Janaína nos separamos de Olavo no caminho para o refeitório, e entramos no banheiro feminino do térreo. Eu fazia xixi, enquanto Janaína trocava o absorvente, na cabine ao lado da minha. Nós saímos quase ao mesmo tempo, e ficamos de frente ao espelho; eu lavando as mãos e o rosto, e Janaína arrumando o cabelo.
- Droga! A minha menstruação tinha que chegar em plena semana de provas!? É muita felicidade pra uma pessoa só, não sei se eu vou aguentar! - disse Janaína, sarcasticamente, enquanto arrumava a sua franja.
- Nem me fale, a minha tá quase chegando também... - eu parei, subtamente, ao perceber que havia mais alguém no banheiro.
Pelo enorme espelho à nossa frente, eu pude ver a minha imagem, a de Janaína, e a de Helene, escorada, calmamente, na porta do banheiro. Eu sufoquei um grito de susto, e me voltei rapidamente para a porta, onde não havia ninguém.
- O que foi, Carol? - perguntou Janaína, preocupada.
- Nada... - eu disse, surpresa, ao encarar a porta do banheiro - Eu só... Não foi nada.
"Ótimo! Ficar louca seria o ponto máximo de um ano totalmente incrível"- pensei, começando a ficar preocupada com a possibilidade de estar perdendo a cabeça, ou pior... de realmente ter visto a Helene naquele banheiro.
- Tem certeza? - perguntou Janaína, olhando na mesma direção em que eu olhava, paralisada, como se a porta tivesse me hipnotizado.
- Tenho, vamos só... sair daqui, ok!? - eu pedi, e Janaína me acompanhou para fora do banheiro, parecendo realmente muito precocupada.
No caminho para o refeitório, eu tentava convencer a mim mesma de que aquilo não passara de uma ilusão, não fazia sentido a Helene estar de volta, com que propósito? O que ela estaria querendo dessa vez? Matar a filha de alguém que, provavelmente, infernizou a vida dela durante a adolescência, não teria sido o bastante? Era como ter voltado ao início do ano, e a todas as perguntas que tanto me assombraram a respeito das intenções de Helene.
Só consegui parar de pensar na Helene quando a irmã Joana colocou a prova de matemática na minha frente, e ainda assim eu tive que me esforçar um pouquinho para me concentrar em números e cálculos, ao invés de em espíritos vingativos.
Em meia hora de prova, eu não conseguira responder nada, a minha mente estava totalmente voltada para a aparição de Helene. Eu tinha medo de vê-la a qualquer momento, na minha frente, perguntando se eu não sentira saudades. E foi quase o que aconteceu. Eu tirei a minha atenção da prova por um instante, e olhei em direção a porta da sala, de onde Helene me observava, através da tela de vidro, com o mesmo olhar esnobe de sempre. Eu olhava fixamente para ela, e de repente, tudo em volta parecia ter sumido, ou não ter significado algum, a única coisa que existia era aquele fantasma atrás da porta, me observando, quase como se dissesse: "Pensou que tinha se livrado de mim?... Vem cá, Carol... eu senti tanto a sua falta"...
- Amallya!? - disse a irmã Joana, chamando a minha atenção. Eu pude sentir, envergonhada, os meus olhos lacrimejando - Acredito que a sua atenção deveria estar voltada para a SUA prova, não concorda!? - ela disse, com um olhar fulminante.
Eu quase enterrei a minha cara na mesa, me esforçando para não olhar novamente para a tela de vidro na porta da sala. Tentei ao máximo me concentrar na prova, mas a imagem de Helene não saia da minha cabeça, logo eu só pensava em responder as questões o mais rápido possível, e correr para a biblioteca. Eu precisava avisar Olívia sobre a possível volta de Helene. Depois que o som da sirene anunciou que já se passara uma hora desde o início da prova, eu finalmente pude entregá-la à irmã Joana e sair correndo de dentro da sala. Uma vez no corredor, eu me surpreendi com a imagem de Helene, que para o meu desespero, estava ao lado da escada que me levaria para o andar da biblioteca, como se estivesse vigiando a passagem.
Ela olhava para mim de maneira desafiadora, eu tentei não demonstrar o meu medo, e continuei andando até a escada, sem desviar o olhar do imponente espírito. Inconscientemente, eu apressei o passo quando comecei a subir a escada, me odiando por ter dado esse gostinho a ela.
- Mande lembranças pra Olívia... - disse Helene.
O meu sangue ferveu, e eu parei subitamente, me voltando para ela, que para a minha total surpresa, sumira do pé da escada. Eu engoli em seco, e continuei subindo os degraus, o mais rápido que pude.
Eu abri a porta da biblioteca, e a minha expressão pareceu ter assustado Olívia, que se levantou rapidamente do birô, e veio em minha direção. Eu estava ofegante, e suava muito.
- Olívia... - comecei, parando para respirar.
- O que houve, menina? Parece que viu um... - começou ela.
- Não! Essa piadinha eu não aguento! Nem começa! - eu disse, com todo o fôlego que eu consegui acumular, desabando na cadeira em frente ao birô de Olívia. Ela alisava o meu cabelo, tentando me acalmar.
- O que aconteceu? - perguntou ela, preocupada.
- Eu vi... - comecei, parando subitamente ao ver uma foto muito familiar, abandonada sobre o birô de Olívia - O que você tá fazendo com essa foto? - perguntei, um tanto alto demais, pegando a fotografia de anuário da turma do primeiro ano de 1978.
- Fala baixo, sua retardada! Isso aqui ainda é uma biblioteca, esqueceu!? - disse Olívia, passando a puxar o meu cabelo, ao invés de alisá-lo.
- Aaai, Liv! - eu disse, como reação a dor, que não foi tão grande.
- Desculpe... - disse ela, voltando a sentar atrás do birô.
- Qualé a da foto? - perguntei novamente.
Ela respirou fundo, e me olhou séria...
- Essa é a Helene? - ela perguntou, apontando a maldita garota de olhar intimidador, na foto.
- Sim... Mas por que... - eu disse, começando a ficar intrigada com aquela conversa.
- Eu tenho visto ela - disse Olívia, me deixando surpresa e aliviada ao mesmo tempo.
- Graças a Deus... - eu disse - não tô ficando louca...
- Você também tem visto ela?
- Começou hoje... Mas que porra! O que essa psicopata quer dessa vez? - eu me perguntei, atentando para não aumentar o tom da minha voz com a minha raiva.
- Você não consegue pensar em nada...? Ou em alguém...? - insinuou Olívia, com uma expressão super preocupada em seu rosto, inevitavelmente, me fazendo lembrar da minha mãe.
- Puta que pariu! - eu quase berrei, quando me dei conta do que Olívia tentava me dizer - Ela... ela quer à mim!? - eu perguntei, desnecessariamente.
- Você tem que sair dessa escola o mais rápido possível! Inventa aluma coisa pra sua mãe vir te buscar, diz que tá doente, arranja algum problema sério com a madre superiora pra ela te suspender, sei lá... - alertou-me Olívia, seriamente preocupada.
- Não! Eu não posso sair daqui, não agora que a Helene está de volta. Além do mais, você mesma disse que ela não pode fazer mau à alguém como eu... - comecei, tentando me reconfortar.
- Amallya, eu acredito que já deixei bem claro o que pode acontecer se você tentar enfrentar um espírito como a Helene...
- Eu não ligo! - e desta vez eu não liguei para o tom da minha voz, me sentindo envorgonhada depois - Eu não vou deixar ela vencer, Olívia... Não dessa vez! - eu disse, olhando formemente para a amiga à minha frente, e me retirando da biblioteca, feito um furacão.
Olívia ainda tentou me impedir, levantando-se do birô, mas eu fui mais rápida, e saí da biblioteca, apressando-me para o andar inferior.
O andar térreo já estava cheio de alunos que terminaram as suas provas mais cedo. Eu ainda tinha a esperança de dar de cara com a Helene, mais uma vez, e desafiá-la, mas ela não apareceria em um lugar tão cheio de gente... Ou pelo menos era o que eu esperava.
Em meio a multidão de alunos eufóricos, estava o ameaçador olhar, lindamente esverdeado, de Helene. Eu correspondi ao seu olhar com um mais ameaçador ainda, e comecei a caminhar decidida à seu encontro. "Vou te mandar direto pra o inferno, vagabunda!" - eu pensava, enquanto andava em sua direção, esbarrando em alguns alunos no percurso.
Alguém muito alto tirou a minha visão de Helene, por um instante, e quando eu olhei novamente para o fim do corredor, ela não estava mais lá. Eu comecei a olhar em todas as direções, e quando olhei para o meu lado esquerdo, pude vê-la tão próxima de mim, que institivamente, fui forçada a recuar, um pouco amedrontada. Mais pessoas na minha frente, e mais uma vez ela desaparecera. E a maldita ficou repetindo esse ato de sumir e reaparecer em um lugar diferente, até eu começar a ter a angustiante sensação de que ela estava em toda a parte, rindo de mim.
Eu podia ouvir o comentário de alguns alunos, a respeito do meu estado de medo e raiva, ao estar sendo totalmente manipulada por um espírito.
"Ela deve estar maluca, que nem a outra que se matou" - sussurravam vozes desconhecidas e cheias de escárnio.
- "Olha só como ela é estranha! Tá chorando... só pode estar maluca!"
- "Eu sabia que ela ia acabar assim, tava passando muito tempo com a Gabriela antes da garota se matar..."
- "Maluca"
- "Ela tá chorando?"
- "Ela tem que sair da escola! Já basta de gente enlouquecendo aqui!"
Eu reprimi uma extrema vontade de gritar, e saí daquele lugar o mais rápido que pude. Helene estava tentando me enlouquecer, estaria ela tentando fazer comigo o mesmo que fizera com a pobre Gabriela? Mas por que naquele momento? Depois de todos aqueles meses?
Correndo freneticamente, eu atravessei o lobby da escola, me enfiando dentro do bosque, sem saber ao certo para onde estava indo. Muitas coisas assombravam a minha mente naquele momento. Quando eu finalmente dei por mim, estava dentro da igreja no coração do bosque da escola. Me senti segura ali, não sabia o porquê, mas eu simplesmente me senti segura, como em nenhum outro lugar. Não havia ninguém lá, e a igreja estava escura e silenciosa. Eu me sentei em um dos bancos, enxugando as lágrimas em meu rosto, e tentando recuperar o fôlego. Eu admirei a abóbada da igreja, me dando conta de que nunca havia visto nada tão bonito naquela escola. No teto havia um lindo desenho da pomba que representa o espírito santo. O pássaro era enorme e intimidador, parecia estar protegendo as pessoas abaixo dele, de suas asas irradiavam traços dourados. Eu me senti tão em paz, admirando aquela verdadeira obra de arte, que decidi me deitar no banco, encarando a linda imagem na abóbada, me sentindo estranhamente protegida.
- Amallya? - aguém chamava por mim, enquanto me sacudia.
Demorou alguns segundos até eu perceber que se tratava da voz do padre Jonas. Eu me levantei num pulo, sentindo uma chata dor de cabeça, talvez pela posição e o local em que dormira.
- Padre... me desculpa, eu... - comecei, ainda meio atordoada.
- Você não precisa se desculpar por ter pegado no sono dentro da igreja - disse o padre Jonas, me ajudando a levantar do banco.
- Obrigada... - observei que o lugar estava mais escuro - Já anoiteceu? - perguntei surpresa.
- Sim, já passa das seis, e todos estão no refeitório, jantando. Eu te levarei até lá.
Pensei em Olvao e Janaína, que deveriam estar mortos de preocupação, afinal, eu sumira por quase cinco horas. O bosque estava assustadoramente escuro e silencioso naquele momento. Apressei o passo, ao perceber que o padre Jonas se distanciara de mim.
- O que te levou a procurar a igreja, filha? - perguntou o padre Jonas, repentinamente, no momento em que atravessávamos o lobby da escola.
- Eu não sei ao certo... só cheguei lá - respondi, escondendo a parte em que eu estava sendo perseguida por um espírito que, provavelmente, queria me enlouquecer, ou pior...
- Bem... me conforta saber que o seu coração te guiou para um lugar bom... - disse o padre Jonas.
- Com o perdão da palavra, senhor... Assim como as pessoas; nenhum lugar é totalmente bom - eu disse, sem saber ao certo o que me levara a desabafar aquilo, ainda mais com o padre Jonas, que me olhou com repulsa pelo meu comentário.
Ao chegarmos no refeitório, eu avistei rapidamente a mesa onde Olavo e Janaína comiam, e fui até eles, deixando o padre Jonas para trás.
- Oi, gente... - eu disse, me sentando em uma das cadeiras vagas. Havia um terceiro prato esperando por mim na mesa.
- Onde você se meteu, sua retardada? - perguntou Janaína, tomando um gole de suco de laranja, em seguida.
- Você desapareceu depois da prova, e deixou a gente morto de preocupação - completou Lavinho.
- Eu sei, me desculpem... Eu... tava na igreja.
- Tava de detenção? O que foi que você fez? - perguntou Janaína, surpresa.
- Não, eu não tava cumprindo detenção, eu... comecei a caminhar pela escola, depois da prova, fui parar lá, me deitei em um dos bancos e dormi, foi só isso - eu disse, começando a comer, me dando conta do quanto eu estava faminta.
- De todos os lugares para se tirar um cochilo nessa escola você foi escolher logo aquela igreja bolorenta!? Eu só tenho amigo fudido da cabeça mesmo! - comentou Janaína, sem se preocupar em me ofender com o comentário.
- Da próxima vez avisa, pô! A gente ficou precocupado - disse Lavinho, acariciando a minha mão esquerda. Institivamente, eu afastei a minha mão, me arrependo ao ver que Olavo ficara envergonhado.
- Bem, me deculpem se eu sou humana e as vezes preciso de um momento sozinha! Não sabia que precisava da permissão de vocês pra conseguir isso - eu disse, tentando não parecer grosseira.
Olavo e Janaína ficaram em silêncio, e eu pude comer em paz. Devo ter levado menos de dez minutos para tanto, tamanha era a minha fome. Encerrei a minha refeição com um último gole do suco de laranja, e foi nesse mesmo momento que a sirene tocou, e todos no refeitório se levantaram para formar as filas com direção aos dormitórios.
Eu e Janaína nos despedimos de Lavinho, no momento em que as nossas filas se separaram, e eu entrei no dormitório feminino, parando abruptamente na porta do aposento. Eu escutei os gritinhos de reclamação das meninas que estavam atrás de mim mas não dei a miníma, eu não me movi. As garotas atrás de mim me empurravam para poderem entrar, exceto Ína, que permaneceu ao meu lado, preocupada com o meu estado de choque.
- Carol, você tá bem? O que há de errado? Você tá gelada... - comentou ela, ao tocar no meu braço.
Me perguntei se alguém mais sentia o penetrante frio que tomava conta de todo o dormitório. "Ela está aqui!" - eu pensei, com toda a convicção do meu ser, e me apavorei.
- Não foi nada, eu... só fiquei um pouco tonta, acontece - eu disse, tentando acalmar a minha amiga.
- Se quiser eu te levo à enfermaria... - começou Janaína.
- Não, Ína, não é nada, é sério... Não se preocupa - eu disse, acariciando o seu rosto, e pegando na sua mão para continuarmos a andar até as nossas camas, olhando em todas as direções, esperando encontrar Helene em alguma parte do enorme aposento.
Eu vesti a minha camisola curta de alcinha por cima das minhas roupas de baixo, e me deitei, cobrindo o corpo inteiro com o edredom. Janaína ainda parecia preocupada, mas não me perguntou mais nada.
- Boa noite, Ína - eu disse, ficando de costas para ela, tentando evitar qualquer conversa antes de dormir.
- Boa noite - ela disse, indiferente.
Eu queria que Janaína dormisse o mais rápido possível, para que eu pudesse sair do dormitório no meio da noite, e ir ao encontro de Helene. Eu precisava saber o que ela queria de mim. Eu precisava acabar com aquilo de uma vez por todas... o que me atormentava, era não saber como.
Eu fechei os meus olhos com força, sentindo o frio arrepiar cada pêlo do meu corpo. Não intencionava pegar no sono.
...
Eu corria, corria com toda a minha vontade, sentia meu peito e pernas doerem com o esforço, mas eu corria... Corria em meio à uma escuridão sem fim. Não sabia de quem, ou do quê, eu estava fugindo, mas eu fazia isso com toda a minha vontade. Repentinamente, eu cheguei à uma escada, e à alguns degraus abaixo, estava eu, como se tivesse acabado de cair. Como isso era possível?
Eu fiquei encarando aquela figura muito parecida comigo, chorando amedrontada, no fim da escada, como se eu fosse machucá-la. Ainda vislumbrando a minha própria imagem, no alto da escada, fui agarrada por mãos frias como mármore, e senti o meu pescoço ser, violentamente, puxado para trás. Eu olhei fundo no verde penetrante dos olhos de minha caçadora. Helene sorriu deliciada, antes de rasgar a minha garganta com um único golpe de faca...
Eu acordei ofegante, meu corpo e roupa encharcados de suor. Nesse instante, a porta do dormitório fechou-se abruptamente, fazendo um barulho que ecoou por todo o aposento. Eu pude sentir o meu coração tentar escapar do meu peito, com o susto que levara. Ainda um pouco atordoada, me esforcei para ver Janaína na escuridão, e me desesperei ao ver que ela não estava em sua cama. Pensei em Helene, e me dei conta de que o clima no dormitório também mudara, o penetrante frio da morte dera lugar à temperatura ambiente, nem muito fria, nem muito quente.
Eu pulei da cama, e corri em direção à porta do dormitório. Espiando o lado de fora, me deparei com Janaína descendo as escadas para o térreo.
- Janaína!? - eu gritei, sem me preocupar em acordaqr as outras pessoas nos dormitórios.
Ela não respondeu ao meu chamado, e continuou descendo os degraus da escadaria, até sumir de vista. Nesse momento, eu me vi assombrada por imagens de um passado que eu daria tudo para esquecer. Estaria acontecendo tudo de novo? Helene atacara novamente, e desta vez, a vítima escolhida seria a minha melhor amiga? Aquilo precisava acabar, de uma vez por todas. Ela não tinha razão para querer fazer mal algum contra Janaína, a não ser que ela pretendesse me atingir através dela. Decidi não perder mais nenhum segundo me perguntando sobre os planos de Helene, corri em direção à escada, tentando seguir Janaína.
Quando eu cheguei ao térreo, ela já ia muito longe, para além do lobby da escola. Estranhei o fato de a porta principal estar aberta, uma vez que todos os alunos já dormiam, então imaginei que talvez ainda não passasse das onze horas, e que houvessem funcionários cumprindo expediente no Lar.
- JANAÍNA!? - eu gritei mais uma vez, desta vez mais alto, chamando pelo nome da minha melhor amiga, na esperança de que ela me respondesse. Mas ela não respondeu, o que me deu a certeza de que Janaína não comandava mais o seu própio corpo. Atingida pela certeza de que a minha amiga corria grave perigo, eu corri o mais rápido que pude em direção à entrada do colégio. Janaína, por sua vez, também apressou-se.
Cheguei ofegante aos degrais que antecediam a entrada da escola. A única luz que iluminava o pátio frontal do Lar era a da lua, que naquela noite estava minguante, formando um perfeito sorriso no céu, a escuridão parecia, de fato, estar antecedendo algo horripilante. Senti a minha espinha gelar, ao ver que Janaína se precipitara pelo bosque. "Estou caminhando direto para uma armadilha" - pensei, recuando alguns passos nos degraus do lobby. "A sua melhor amiga ainda está lá, e precisa de você". Eu respirei fundo, sentindo o meus pulmões se encherem do gélido ar noturno, e corri em direção ao bosque, sem pensar no que poderia estar me aguardando lá. Eu pisava no chão de terra e folhas secas, sendo guiada pela luz da lua, que penetrava, timidamente, a floresta por entre os galhos das imensas arvores. A escuridão não me permitia ver Janaína, mas eu podia ouvir os seus passos adiante. Ao chegar na igreja, que ficava em uma área mais aberta do bosque, e por isso a luz da lua penetrava com mais intensidade, pude ver Janaína entrando na velha construção. O medo me disse para não dar mais nenhum passo, e voltar para a escola o mais rápido possível, e devo confessar que, por um instante, aquela idéia me pareceu bem tentadora. Mas eu não podia abandonar Janaína. E foi pensando nela que eu tomei coragem para colocar um pé na frente do outro, e continuar caminhando até a igreja.
Eu abri a imensa porta de madeira envelhecida, e entrei. O rangido da porta ecoou gravemente, tamanho era o silêncio do lugar. Em meio à densa escuridão, me esforcei para enxergar o pequeno altar com a imagem de nossa senhora de Aparecida, onde eu sabia que haviam algumas velas,e se eu tivesse sorte; fósforos. Eu dei alguns passos para a direita, e esbarrei no simples altar de madeira, começando a tateá-lo às cegas, encontrando imediatamente um castiçal com uma vela, e para a minha felicidade, uma caixa de fósforos.
Eu acendi a vela de imediato, e vasculhei o lugar com a fraca e amarelada luz que emanava do fogo, procurando por algum sinal de Janaína.
- Janaína!? - eu chamei, sem gritar.
Não houve resposta.
Eu caminhei, cautelosamente, em direção ao altar da igreja, onde havia uma imensa cruz de madeira com a tradicional imagem de Jesus Cristo sobre ela. Foi quando eu ouvi o forte som de algo muito pesado sendo arrastado, cortando violentamente o silêncio, o que me fez virar em direção ao foco do barulho, quase apagando a vela com o movimento brusco que eu fizera. O som viera do confessionário, que ficava atrás de uma cortina vermelho-sangue. A cortina balançara, por efeito do vento, ou porque alguém acabara de movimentá-la. O medo me paralisara. Naquele momento eu desejei não ter entrado na igreja, e até pensei em sair correndo sem olhar para trás, mas era tarde demais, a porta estava muito longe, e algo na escuridão me dizia que seria muito arriscado tentar fugir. Nao vendo outra saida, eu comecei a me mover em direção à cortina que antecedia o confessionário. Eu toquei o tecido plumado da cortina, respirando fundo e abrindo-a, abruptamente. Atrás não havia ninguém, nem nada, além do confessionário. Eu respirei aliviada, e intrigada, ao mesmo tempo. Olhei para trás, procurando pelo menor sinal de vida. Eu já estava recuando, quando olhei para o confessionário uma última vez, e percebi algo muito estranho. De fato, ele havia sido movido, e tal movimento desvendara uma fenda, antes ocultada pelo confessionário. Eu o movi um pouco mais, e aos poucos, uma estreita passagem foi se revelando à minha frente. Eu tampei o nariz ao sentir o desagradável odor que emanava do lugar. Tentei iluminar a passagem secreta com a pouca luz que emanava da chama da vela, mas não servira nem para ter uma noção do tamanho do lugar, que na verdade parecia ser um buraco, pois não havia chão além da passagem, só o breu. Eu ergui a minha visão e me deparei com uma escritura, raspada profundamente na parede acima da passagem, e ao ler a palavra, senti a minha mente ser levada no passado para uma conversa que eu tivera com uma assustada Anita, na biblioteca, e que, até aquele momento, me parecia sem importância. Na conversa, ela me falara sobre um lugar secreto em que Helene e seus dois melhores amigos, Caio e Marcos, costumavam ir durante a noite. O lugar fora descrito por Anita como um "Refúgio" para os três amigos. E não podia ser mera coincidência que a palavra "REFUGIUM" estivesse cravada em uma parede acima de uma passagem oculta, e que parecia não ser visitada por ninguém há anos. Atingida pela repentina descoberta, eu recuei, amedrontada, e ao me virar, me encontrei com o olhar de Janaína, tão próxima de mim que poderia me beijar. Ela sorria, sorria de um jeito que não era comum a ela, mas que me era terrivelmente familiar...
Eu só pude libertar um grito de pavor, antes de ser empurrada para a passagem atrás de mim, sendo tragada pela escuridão em uma curta queda, e perdendo a consciência ao chegar no chão.