segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Capítulo 16 - Refugium



Olavo estava sentado em um banco de pedra, próximo ao bosque da escola, quando eu e Janaína nos aproximávamos para falar com ele. O dia estava particularmente lindo, o sol brilhava como nunca, e sua luz banhava as folhas das árvores do bosque, criando um efeito mágico de se olhar. Janaína estava muito nervosa, mas ela foi a primeira a falar com o amigo.
- Oi - ela disse, timidamente.
- Oi... - Lavinho respondeu, sem olhar em nossa direção.
Eu apertei forte a mão de Janaína, encorajando-a para continuar a falar.
- Será que... você poderia perdoar uma amiga que falou muita merda, foi completamente cabeça dura com você, e que se arrepende muito do que fez?
Olavo não respondeu nada, só se levantou do banco, e nos abraçou, tão forte, que nada mais precisou ser dito...
- Meus pais vão se separar - ele disse baixinho, enquanto nos abraçava, e eu percebi, com uma imensa dor no meu coração, que ele chorava. Ficamos abraçados por uns minutos, como se compartilhássemos a mesma dor.

Eu olhava para Leonardo, sentado sobre a a minha cama, obervando concentrado a paisagem além da janela do meu quarto. Por um momento eu hesitei em chamar a sua atenção, queria observá-lo ali, quietinho, absorto em seus próprios pensamentos, e tão lindo, como sempre fora. Mas ele percebeu a minha presença, e lançando um sorriso que me desmontou em mil pedaços, ele veio em minha direção.
- Oi - ele disse, muito próximo a mim. O frio que emanava dele já penetrava cada parte do meu corpo.
- Oi... - eu disse, sem olhar para ele. Tentava encontrar coragem para me desculpar pela maneira fria com que eu vinha tratando ele - Eu queria que você me desculpasse...
- Pelo quê? - ele perguntou, serenamente.
- Eu tenho sido uma idiota desde... Eu não tenho te tratado bem, e...
- Você não precisa se desculpar por nada... - ele disse, beijando levemente os meus lábios, em seguida - Eu tenho sido muito egoísta, esse tempo todo, se alguém tem que se desculpar aqui, sou eu...
- Não, Léo...
- Eu tenho sido um egoísta, te impedindo de usar o seu dom para ajudar outras pessoas, e eu queria te dizer que... eu sinto muito orgulho de você por ter tentado ajudar a Gabriela...
Eu senti as lágrimas descerem pelo meu rosto.
- Eu não consegui salvá-la...
- Mas eu tenho certeza que você fez tudo o que estava ao seu alcance... Droga! Queria tanto poder te dar um abraço - ele disse, parecendo realmente muito triste por não poder me consolar mais.
Resolvi tentar parar de chorar, para diminuir a sua angústia.
- Você tem razão... Obrigada por tudo, Léo, e mais uma vez... Me desculpa... - eu disse, tentando ao máximo esconder dele, o quanto eu ainda me sentia culpada pelo fim de Gabriela - Eu vou tomar um banho - eu disse, ainda predendo o choro, deixando Leonardo com uma expressão triste em seu rosto, próximo à janela do meu quarto.
Com o tempo, eu decidi que aquela era uma culpa que eu estava condenada a carregar sozinha, em silêncio, pelo resto da minha vida.

Minha mãe se preparava para uma viagem ao Nordeste, onde ela iria visitar a minha avó, e sua mãe, a simpática dona Angélica, naquele sábado. Depois de ter preparado uma mala para dois dias, ela foi ligar para o meu pai, que deveria vir me buscar para passar o fim de semana com ele...
- Já se passaram dois meses desde a última vez em que ela te viu[...] Não! Não vem com esse papo de trabalho[...] E desde quando essa VAGABUNDA se tornou mais importante pra você do que a sua própria filha?[...] quer saber!? VAI SE FUDER, MÁRIO! Eu realmente espero que quando você tiver um filhote com essa cadela, ele receba toda a atenção que uma criança merece receber do pai. Não! Espera! Pra falar a verdade: EU NÃO DOU A MÍNIMA PRA VOCÊ OU PRA QUALQUER ABERRAÇÃO QUE ESSA VADIA PARIR!
Olga enfiou o tefone de volta no gancho, e por um momento eu pensei que ela havia quebrado o objeto. Mamãe respirou fundo, parecia estar pocessa de raiva. Depois de um tempo, ela voltou-se para mim, e tentando aparentar o máximo de serenidade, disse...
- Querida... Eu acho que você vai ter que ficar sozinha durante esse fim de semana... Mas não se preocupe, eu vou deixar dinheiro pra você comer fora e... vou tentar voltar o mais rápido possível no domingo, ok!?
Acho que nem pessoas que ganham na mega-sena ficam tão felizes como eu fiquei ao ouvir aquelas palavras. Eu nunca tivera a chance de ficar sozinha em casa por tanto tempo, e tal oportunidade me dera a idéia de chamar Olavo e Janaína para uma "festa do pijama". Sim! O nosso conceito de "festa do pijama" era muito diferente do que as pessoas estão acostumadas. Por exemplo; esse lance de ser uma coisa só de meninas não se aplicava à festa do pijama idealizada por mim, Olavo, Leonardo e Janaína; dormir estava fora de cogitação, e ao invés de leitinho morno com chocolate em pó, nós bebiamos vodka com refrigerante. Claro que depois de dois copos da bebida, todos, principalmente Janaína, se mostravam um pouco mais, como eu posso dizer?... transparentes... é, acho que é esssa a palavra certa: "transparentes"...
- Ok, ok... querem saber? Não tem nada de nojento nisso... - começou Janaína, virando mais um copo, o terceiro dela naquela noite, em meio às nossas gargalhadas - Eu... já fiz sexo oral no meu primo...
- Safada! - eu disse em tom de brincadeira.
- Huuum, a conversa tá ficando interessante - comentou Lavinho, nos fazendo rir ainda mais.
- Ah, gente... é algo muito normal, e eu não me arrependo de ter feito...
- Mas... sei lá, é um pênis, Ína, na sua boca... pênis são nojentos... - eu dizia, fazendo cara de nojo.
- Concordo! - exclamou Olavo.
- Quer dizer que você nunca fez um boquete no Léo? - perguntou Janaína, e todos nós rolamos pela minha cama, rindo sem sabermos exatamente do quê.
- Não, claro que não... - eu olhei para Leonardo, que nos observava, também aos risos, próximo à porta do meu quarto. Ele me deu um sorriso, pronunciando a palavra "mentirosa", labialmente. Eu dei outro sorriso, e voltei para a conversa com Olavo e Janaína.
- Não foi o que eu ouvi... - comentou Janaína, ainda rindo.
- Eu também já fiz sexo oral em uma prima minha, mas... ela pediu pra parar porque tava fazendo cócegas - comentou Olavo. A sua voz já estava afetada pela bebida.
- Alguém precisa te ensinar a fazer sexo oral, amigo... - disse Janaína, começando a rir de Olavo.
Eu exagerei tanto na risada dessa vez, que acabei caindo da cama, fazendo Olavo e Janaína quase sufocarem de tanto rir.
Quando a bebida nos derrubou, ficamos deitados os três em minha cama, olhando o sol nascer através da janela, ainda balbuciando algumas coisas sem o menor sentido, e rindo a toa. Depois que Janaína pegou no sono e começou a babar no meu braço, estávamos somente eu e Lavinho acordados, eu procurava por Leonardo no quarto, mas não o via em lugar algum.
- Você se lembra da última vez que bebemos juntos? - perguntou Lavinho, que estava deitado ao meu lado, a minha cama não era tão grande, por isso nós três tivemos que ficar muito apertados.
- Acho que sim, foi... Na casa do Léo, quando os pais dele viajaram pra comemorar o aniversário de casamento, ou algo do tipo... - eu dei uma risada ao me lembrar daquele dia - Você lembra que a Janaína tentava me beijar o tempo todo, e... - outra risada - eu tava tão de saco cheio que peguei ela e tasquei um beijo, eu mesma... - nós dois começamos a rir juntos - daí ela olhou pra mim com uma cara super estranha e disse: "Carol... Eu te acho super gata e tal, mas... eu e você nunca vamos ser nada além de grandes amigas" - mais risos - Tipo, ela que tava louca querendo me beijar e quando eu finalmente dou um beijo nela... - nós rimos por alguns segundos, e depois paramos, para recuperar o fôlego, voltando a admirar o nascer do sol.
- Eu sinto falta dele... - disse Lavinho, com um olhar distante, para além da janela, e eu sabia que ele estava falando do Léo.
A amizade de Leonardo e Olavo, certamente, era algo muito forte e que ia além da minha capacidade de imaginar o quanto. Eles moravam na mesma rua, desde pequenos, cresceram juntos, e eram tão inseparáveis que a mãe de Leonardo foi obrigada a matricular o filho na mesma escola que o amigo.
- Eu posso imaginar... - eu disse, olhando para o meu melhor amigo. Seus olhos começavam a lacrimejar.
- Quando os meus pais tiveram a primeira briga séria, tipo... coisas quebrando pela casa, e tal... O Léo apareceu no meu quarto, dizendo que queria me tirar de lá... Ele entrou escondido dos meus pais, acredita?... A gente saiu de casa correndo e fomos jogar bola, na quadra da rua... Eu dormi na casa dele aquela noite, claro que foi o primeiro lugar pra onde a minha mãe ligou quando deu pela minha falta... A mãe do Léo tentou acalmá-la, e a convenceu de me deixar passar a noite lá... Claro que aquilo não tornou as coisas mais fáceis, quando eu voltei pra casa... Mas significou muito pra mim, sabe?... A partir daquela noite eu me convenci de que nunca iria ter outra amizade que nem a do Léo... Não é o tipo de coisa que se encontra facilmente, sabe?... - disse Olavo, lutando contra a própria vontade de chorar.
Eu dei um beijo em seu rosto...
- Eu sei... - eu disse, olhando-o fixamente.
Olavo me encarou de volta, seu olhar ainda parecia muito triste. Nós ficamos nos admirando por alguns segundos, e quando a sua expressão mudou, eu me lembrei do possível interesse que o meu melhor amigo tinha por mim, o que me fez desviar o olhar, rapidamente, pretendendo não causar uma falsa impressão, caso ele estivesse realmente nutrindo algo mais forte que um sentimento de amizade por mim.
- Eu... vou dormir no sofá... - eu disse.
- Não, por favor, a cama é sua... - disse Olavo, parecendo envergonhado.
- Não, Lavinho, por favor... Fica aqui, eu... não consigo dividir a cama, frescura minha, fica à vontade, tá!? - eu disse, me retirando rapidamente do quarto.
Eu nunca havia pensado em Lavinho como algo além de um amigo, e começar a pensar nisso me assustava de um jeito que me forçava a mantê-lo o mais longe possível de mim. Eu nunca soube lidar muito bem com os meus próprios sentimentos, na maioria das vezes, tenho muito medo deles, principalmente daqueles que eu não consigo controlar.
Eu me joguei no sofá, com a cabeça enterrada em um dos travesseiros, para sufocar uma estranha vontade de chorar, "talvez seja a bebida!" - pensei - "talvez você esteja se apaixonando pelo seu melhor amigo" - pensei novamente, e quando menos percebi, estava encharcando o travesseiro com as minhas lágrimas - "nunca mais eu ponho uma gota de bebida alcoólica na boca" - eu pensei, começando a rir da minha própria mentira, caindo no sono, repentinamente.
Na manhã seguinte, eu fui a primeira a despertar, minha cabeça latejava e o meu corpo inteiro parecia prostestar pelos exageros da noite passada. Depois de me espreguiçar, eu me arrastei feito uma morta-viva até a cozinha, consciente de que teria que preparar um café da manhã para três. Eu dei uma olhada para o fogão, e pensei: "aaah, foda-se! Eu não vou preparar esse café sozinha". Subi até o meu quarto, e chegando lá, pulei em cima de Olavo e Janaína, que não gostaram nenhum pouco daquilo...
- Porra, Carol! Tá maluca!? Tem medo de morrer, não!? Nem a minha mãe é louca de me acordar quando eu tô de ressaca... - Protestou, Janaína, me surrando com um dos travesseiros da cama, enquanto Olavo fazia o mesmo com o outro travesseiro.
- Ah, gente, eu fui até a cozinha pra preparar o café da manhã e pensei: "Eu não vou ter toda essa diversão sozinha. Vou chamar meus dois melhores amigos para me ajudarem"...
- É? Engraçadinha! Nós somos visitas, você deveria trazer o nosso café da manhã em uma bandeja... - começou, Lavinho.
- Cala a boca que "visitas", aqui em casa, vocês dois não são mais faz tempo, seus folgados! - eu puxei o edredom com toda a força que pude, fazendo Olavo e Janaína cairem no chão.
Eu olhei para o lado, e vi Leonardo, que acompanhava toda a cena, rindo. Claro que eu também não resisti e comecei a rir. No chão, Olavo e Janaína me xingavam, e soltavam altas gargalhadas ao mesmo tempo, acompanhadas de gemidos de dor, devido a pequena queda. Inesperadamente, eles se levantaram e começaram a correr atrás de mim pela casa inteira, querendo vingança.
- Volta aqui, Carolsinha! - dizia Olavo, enquanto me perseguia na sala da casa.
- Eu quero ver se você vai rir quando eu te pegar! - disse Janaína, tentando me alcançar.
Quando Olavo conseguiu se aproximar de mim, me agarrou pela cintura, e me jogou no sofá. Os dois começaram a fazer cócegas em mim, até eu quase fazer xixi na roupa.
Na cozinha, nós preparamos três mistos quentes, e Janaína fez o café dela, que eu e Olavo tanto bajulávamos. Quando tudo estava posto na mesa, eu corri para a sala e coloquei o primeiro albúm do Kid Abelha para tocar.
- Caraaaalho, esse café tá muito bom, Ína! - comentou Olavo.
- Muito foda! - eu disse, de boca cheia.
- E vocês são dois puxa-sacos - disse Janaína.
Leonardo nos observava, dessa vez aparentando tristeza. Fiquei preocupada com ele, mas decidi abordá-lo para uma conversa, depois do café da manhã.
- Nossa, tá fazendo muito frio aqui, não acham? - comentou Olavo.
Eu olhei para Leonardo, sabendo que a presença dele era a razão para o frio constante.
- É verdade - concordou Janaína, tentando aquecer os braços com as mãos.
- Eu não tô sentindo, vocês devem estar doentes, ou sei lá... Me passa o café, Ína - eu disse, tentando mudar o foco da conversa, e quando olhei novamente para onde Leonardo estava, percebi que ele havia sumido.
Quando a minha mãe telefonou, por volta das dez da manhã, avisando que estava voltando para casa, Olavo e Janaína começaram a se preparar para irem embora. De onze horas eu os deixei na parada de ônibus mais próxima, e voltei sozinha para casa, ansiosa para conversar com Leonardo. Assim que cheguei, fui direto para o meu quarto, onde Leonardo estava na janela, de costas para mim.
- Você tá legal? - perguntei, me aproximando dele.
- Tô sim... Não precisa se preocupar - ele respondeu, permanecendo de costas.
- Você parecia meio triste na cozinha... Foi uma má idéia ter trazido o Lavinho e a Ína pra cá? - perguntei.
- Claro que não! - ele disse, firmemente, voltando-se para mim - É só que... Ver vocês três juntos, se divertindo como a gente costumava fazer... Sei lá... eu fiquei triste por não poder fazer parte da vida de vocês...
- Droga! Eu fui muito egoista, eu deveria saber que... - comecei.
- Não, Amallya! Foi uma ótima idéia trazer os dois aqui. Ou você acha que eu não gostei de rever meus melhores amigos? - ele me repreendeu, me deixando envergonhada por ter pensado que a presença de Olavo e Janaína pudesse ter deixado Leonardo triste - É só que... Eu sinto falta de realmente estar com vocês, só isso... Você me entende? - ele me perguntou, tentando disfarçar a tristeza em seu olhar, provavelmente para não me preocupar mais.
- Eu entendo, me desculpa...
- Não precisa se desculpar, eu fiquei muito feliz em ver que vocês estavam felizes, isso basta pra mim - ele me beijou, como que tentando encerrar aquela conversa. Eu obedeci a seu pedido silencioso, e não não toquei mais no assunto.

Na segunda feira pela manhã, eu estava arrumada para ir a escola, ainda um pouco cansada por não ter dormido muito no fim de semana. Leonardo me observava, distraido, arrumar o material escolar.
- Vou indo... - eu disse, colocando a mochila nas costas - A gente se vê no sábado.
- Não se mete em encranca... ou, pelo menos tenta não se meter em encrenca, sei lá... - ele disse, esboçando um leve sorriso.
Eu me aproximei dele, e beijei sua boca, rapidamente, me deixando ser tomada pelo frio de sua aura e lábios.
- Eu prometo que vou fazer o meu melhor... Enquanto isso, tenta relaxar, ok!? - eu disse, começando a me retirar do quarto...
- Carol...? - disse Léo, me fazendo parar na porta - Eu te amo - ele disse, com um olhar um tanto apreensivo, quase como se estivesse dizendo "por favor, não vá". Eu controlei uma inexplicável vontade de chorar, e respondi...
- Eu também te amo.
Me retirei, abandonando o seu olhar desolado, com uma estranha sensação tomando conta de mim, algo que me alertava baixinho para voltar para dentro do quarto, trancar a porta, e nunca mais sair... Ficar para sempre envolvida pelo frio que emanava de Leonardo, e vigiada pelo seu olhar misterioso e acolhedor.
- CORRE, AMALLYA! OLHA A HORA! - gritou a minha mãe, pontuando a frase com uma longa buzinada do carro.
Eu tentei, em vão, calar aquele alerta que se repetia em minha mente; "Não vá, não entre naquele carro, não ponha os pés naquela escola...", e uma vez dentro do carro, eu olhei para a janela do meu quarto, a procura de Leonardo, querendo admirar o seu olhar mais uma vez (uma última vez?), e para a minha total angustia, ele não estava lá.

Na escola, a primeira coisa sobre a qual eu, Olavo e Janaína conversamos foi a nossa noite de sábado, ou pelo menos o que a gente conseguia lembrar dela, no caso de Janaína: Nada. Eu e Olavo demos muitas risadas tentando fazê-la se lembrar de uma certa confissão que ela fizera, sob o efeito de três copos de Vodka com refrigerante, envolvendo sexo oral e um certo primo dela.
- Mentirosos! Como é que vocês dois tem a coragem de insinuar que eu fiz um boquete no meu primo!? - protestou Janaína, e seu sorriso denunciava que nem a própria estava botando fé no que dizia.
- Engraçado, há um dia atrás você estava se gabando do quanto era experiente nesse departamento - disse Olavo, me fazendo quase chorar de tanto rir.

Durante o intervalo, eu e Janaína nos separamos de Olavo no caminho para o refeitório, e entramos no banheiro feminino do térreo. Eu fazia xixi, enquanto Janaína trocava o absorvente, na cabine ao lado da minha. Nós saímos quase ao mesmo tempo, e ficamos de frente ao espelho; eu lavando as mãos e o rosto, e Janaína arrumando o cabelo.
- Droga! A minha menstruação tinha que chegar em plena semana de provas!? É muita felicidade pra uma pessoa só, não sei se eu vou aguentar! - disse Janaína, sarcasticamente, enquanto arrumava a sua franja.
- Nem me fale, a minha tá quase chegando também... - eu parei, subtamente, ao perceber que havia mais alguém no banheiro.
Pelo enorme espelho à nossa frente, eu pude ver a minha imagem, a de Janaína, e a de Helene, escorada, calmamente, na porta do banheiro. Eu sufoquei um grito de susto, e me voltei rapidamente para a porta, onde não havia ninguém.
- O que foi, Carol? - perguntou Janaína, preocupada.
- Nada... - eu disse, surpresa, ao encarar a porta do banheiro - Eu só... Não foi nada.
"Ótimo! Ficar louca seria o ponto máximo de um ano totalmente incrível"- pensei, começando a ficar preocupada com a possibilidade de estar perdendo a cabeça, ou pior... de realmente ter visto a Helene naquele banheiro.
- Tem certeza? - perguntou Janaína, olhando na mesma direção em que eu olhava, paralisada, como se a porta tivesse me hipnotizado.
- Tenho, vamos só... sair daqui, ok!? - eu pedi, e Janaína me acompanhou para fora do banheiro, parecendo realmente muito precocupada.
No caminho para o refeitório, eu tentava convencer a mim mesma de que aquilo não passara de uma ilusão, não fazia sentido a Helene estar de volta, com que propósito? O que ela estaria querendo dessa vez? Matar a filha de alguém que, provavelmente, infernizou a vida dela durante a adolescência, não teria sido o bastante? Era como ter voltado ao início do ano, e a todas as perguntas que tanto me assombraram a respeito das intenções de Helene.
Só consegui parar de pensar na Helene quando a irmã Joana colocou a prova de matemática na minha frente, e ainda assim eu tive que me esforçar um pouquinho para me concentrar em números e cálculos, ao invés de em espíritos vingativos.
Em meia hora de prova, eu não conseguira responder nada, a minha mente estava totalmente voltada para a aparição de Helene. Eu tinha medo de vê-la a qualquer momento, na minha frente, perguntando se eu não sentira saudades. E foi quase o que aconteceu. Eu tirei a minha atenção da prova por um instante, e olhei em direção a porta da sala, de onde Helene me observava, através da tela de vidro, com o mesmo olhar esnobe de sempre. Eu olhava fixamente para ela, e de repente, tudo em volta parecia ter sumido, ou não ter significado algum, a única coisa que existia era aquele fantasma atrás da porta, me observando, quase como se dissesse: "Pensou que tinha se livrado de mim?... Vem cá, Carol... eu senti tanto a sua falta"...
- Amallya!? - disse a irmã Joana, chamando a minha atenção. Eu pude sentir, envergonhada, os meus olhos lacrimejando - Acredito que a sua atenção deveria estar voltada para a SUA prova, não concorda!? - ela disse, com um olhar fulminante.
Eu quase enterrei a minha cara na mesa, me esforçando para não olhar novamente para a tela de vidro na porta da sala. Tentei ao máximo me concentrar na prova, mas a imagem de Helene não saia da minha cabeça, logo eu só pensava em responder as questões o mais rápido possível, e correr para a biblioteca. Eu precisava avisar Olívia sobre a possível volta de Helene. Depois que o som da sirene anunciou que já se passara uma hora desde o início da prova, eu finalmente pude entregá-la à irmã Joana e sair correndo de dentro da sala. Uma vez no corredor, eu me surpreendi com a imagem de Helene, que para o meu desespero, estava ao lado da escada que me levaria para o andar da biblioteca, como se estivesse vigiando a passagem.
Ela olhava para mim de maneira desafiadora, eu tentei não demonstrar o meu medo, e continuei andando até a escada, sem desviar o olhar do imponente espírito. Inconscientemente, eu apressei o passo quando comecei a subir a escada, me odiando por ter dado esse gostinho a ela.
- Mande lembranças pra Olívia... - disse Helene.
O meu sangue ferveu, e eu parei subitamente, me voltando para ela, que para a minha total surpresa, sumira do pé da escada. Eu engoli em seco, e continuei subindo os degraus, o mais rápido que pude.
Eu abri a porta da biblioteca, e a minha expressão pareceu ter assustado Olívia, que se levantou rapidamente do birô, e veio em minha direção. Eu estava ofegante, e suava muito.
- Olívia... - comecei, parando para respirar.
- O que houve, menina? Parece que viu um... - começou ela.
- Não! Essa piadinha eu não aguento! Nem começa! - eu disse, com todo o fôlego que eu consegui acumular, desabando na cadeira em frente ao birô de Olívia. Ela alisava o meu cabelo, tentando me acalmar.
- O que aconteceu? - perguntou ela, preocupada.
- Eu vi... - comecei, parando subitamente ao ver uma foto muito familiar, abandonada sobre o birô de Olívia - O que você tá fazendo com essa foto? - perguntei, um tanto alto demais, pegando a fotografia de anuário da turma do primeiro ano de 1978.
- Fala baixo, sua retardada! Isso aqui ainda é uma biblioteca, esqueceu!? - disse Olívia, passando a puxar o meu cabelo, ao invés de alisá-lo.
- Aaai, Liv! - eu disse, como reação a dor, que não foi tão grande.
- Desculpe... - disse ela, voltando a sentar atrás do birô.
- Qualé a da foto? - perguntei novamente.
Ela respirou fundo, e me olhou séria...
- Essa é a Helene? - ela perguntou, apontando a maldita garota de olhar intimidador, na foto.
- Sim... Mas por que... - eu disse, começando a ficar intrigada com aquela conversa.
- Eu tenho visto ela - disse Olívia, me deixando surpresa e aliviada ao mesmo tempo.
- Graças a Deus... - eu disse - não tô ficando louca...
- Você também tem visto ela?
- Começou hoje... Mas que porra! O que essa psicopata quer dessa vez? - eu me perguntei, atentando para não aumentar o tom da minha voz com a minha raiva.
- Você não consegue pensar em nada...? Ou em alguém...? - insinuou Olívia, com uma expressão super preocupada em seu rosto, inevitavelmente, me fazendo lembrar da minha mãe.
- Puta que pariu! - eu quase berrei, quando me dei conta do que Olívia tentava me dizer - Ela... ela quer à mim!? - eu perguntei, desnecessariamente.
- Você tem que sair dessa escola o mais rápido possível! Inventa aluma coisa pra sua mãe vir te buscar, diz que tá doente, arranja algum problema sério com a madre superiora pra ela te suspender, sei lá... - alertou-me Olívia, seriamente preocupada.
- Não! Eu não posso sair daqui, não agora que a Helene está de volta. Além do mais, você mesma disse que ela não pode fazer mau à alguém como eu... - comecei, tentando me reconfortar.
- Amallya, eu acredito que já deixei bem claro o que pode acontecer se você tentar enfrentar um espírito como a Helene...
- Eu não ligo! - e desta vez eu não liguei para o tom da minha voz, me sentindo envorgonhada depois - Eu não vou deixar ela vencer, Olívia... Não dessa vez! - eu disse, olhando formemente para a amiga à minha frente, e me retirando da biblioteca, feito um furacão.
Olívia ainda tentou me impedir, levantando-se do birô, mas eu fui mais rápida, e saí da biblioteca, apressando-me para o andar inferior.
O andar térreo já estava cheio de alunos que terminaram as suas provas mais cedo. Eu ainda tinha a esperança de dar de cara com a Helene, mais uma vez, e desafiá-la, mas ela não apareceria em um lugar tão cheio de gente... Ou pelo menos era o que eu esperava.
Em meio a multidão de alunos eufóricos, estava o ameaçador olhar, lindamente esverdeado, de Helene. Eu correspondi ao seu olhar com um mais ameaçador ainda, e comecei a caminhar decidida à seu encontro. "Vou te mandar direto pra o inferno, vagabunda!" - eu pensava, enquanto andava em sua direção, esbarrando em alguns alunos no percurso.
Alguém muito alto tirou a minha visão de Helene, por um instante, e quando eu olhei novamente para o fim do corredor, ela não estava mais lá. Eu comecei a olhar em todas as direções, e quando olhei para o meu lado esquerdo, pude vê-la tão próxima de mim, que institivamente, fui forçada a recuar, um pouco amedrontada. Mais pessoas na minha frente, e mais uma vez ela desaparecera. E a maldita ficou repetindo esse ato de sumir e reaparecer em um lugar diferente, até eu começar a ter a angustiante sensação de que ela estava em toda a parte, rindo de mim.
Eu podia ouvir o comentário de alguns alunos, a respeito do meu estado de medo e raiva, ao estar sendo totalmente manipulada por um espírito.
"Ela deve estar maluca, que nem a outra que se matou" - sussurravam vozes desconhecidas e cheias de escárnio.
- "Olha só como ela é estranha! Tá chorando... só pode estar maluca!"
- "Eu sabia que ela ia acabar assim, tava passando muito tempo com a Gabriela antes da garota se matar..."
- "Maluca"
- "Ela tá chorando?"
- "Ela tem que sair da escola! Já basta de gente enlouquecendo aqui!"
Eu reprimi uma extrema vontade de gritar, e saí daquele lugar o mais rápido que pude. Helene estava tentando me enlouquecer, estaria ela tentando fazer comigo o mesmo que fizera com a pobre Gabriela? Mas por que naquele momento? Depois de todos aqueles meses?
Correndo freneticamente, eu atravessei o lobby da escola, me enfiando dentro do bosque, sem saber ao certo para onde estava indo. Muitas coisas assombravam a minha mente naquele momento. Quando eu finalmente dei por mim, estava dentro da igreja no coração do bosque da escola. Me senti segura ali, não sabia o porquê, mas eu simplesmente me senti segura, como em nenhum outro lugar. Não havia ninguém lá, e a igreja estava escura e silenciosa. Eu me sentei em um dos bancos, enxugando as lágrimas em meu rosto, e tentando recuperar o fôlego. Eu admirei a abóbada da igreja, me dando conta de que nunca havia visto nada tão bonito naquela escola. No teto havia um lindo desenho da pomba que representa o espírito santo. O pássaro era enorme e intimidador, parecia estar protegendo as pessoas abaixo dele, de suas asas irradiavam traços dourados. Eu me senti tão em paz, admirando aquela verdadeira obra de arte, que decidi me deitar no banco, encarando a linda imagem na abóbada, me sentindo estranhamente protegida.
- Amallya? - aguém chamava por mim, enquanto me sacudia.
Demorou alguns segundos até eu perceber que se tratava da voz do padre Jonas. Eu me levantei num pulo, sentindo uma chata dor de cabeça, talvez pela posição e o local em que dormira.
- Padre... me desculpa, eu... - comecei, ainda meio atordoada.
- Você não precisa se desculpar por ter pegado no sono dentro da igreja - disse o padre Jonas, me ajudando a levantar do banco.
- Obrigada... - observei que o lugar estava mais escuro - Já anoiteceu? - perguntei surpresa.
- Sim, já passa das seis, e todos estão no refeitório, jantando. Eu te levarei até lá.
Pensei em Olvao e Janaína, que deveriam estar mortos de preocupação, afinal, eu sumira por quase cinco horas. O bosque estava assustadoramente escuro e silencioso naquele momento. Apressei o passo, ao perceber que o padre Jonas se distanciara de mim.
- O que te levou a procurar a igreja, filha? - perguntou o padre Jonas, repentinamente, no momento em que atravessávamos o lobby da escola.
- Eu não sei ao certo... só cheguei lá - respondi, escondendo a parte em que eu estava sendo perseguida por um espírito que, provavelmente, queria me enlouquecer, ou pior...
- Bem... me conforta saber que o seu coração te guiou para um lugar bom... - disse o padre Jonas.
- Com o perdão da palavra, senhor... Assim como as pessoas; nenhum lugar é totalmente bom - eu disse, sem saber ao certo o que me levara a desabafar aquilo, ainda mais com o padre Jonas, que me olhou com repulsa pelo meu comentário.
Ao chegarmos no refeitório, eu avistei rapidamente a mesa onde Olavo e Janaína comiam, e fui até eles, deixando o padre Jonas para trás.
- Oi, gente... - eu disse, me sentando em uma das cadeiras vagas. Havia um terceiro prato esperando por mim na mesa.
- Onde você se meteu, sua retardada? - perguntou Janaína, tomando um gole de suco de laranja, em seguida.
- Você desapareceu depois da prova, e deixou a gente morto de preocupação - completou Lavinho.
- Eu sei, me desculpem... Eu... tava na igreja.
- Tava de detenção? O que foi que você fez? - perguntou Janaína, surpresa.
- Não, eu não tava cumprindo detenção, eu... comecei a caminhar pela escola, depois da prova, fui parar lá, me deitei em um dos bancos e dormi, foi só isso - eu disse, começando a comer, me dando conta do quanto eu estava faminta.
- De todos os lugares para se tirar um cochilo nessa escola você foi escolher logo aquela igreja bolorenta!? Eu só tenho amigo fudido da cabeça mesmo! - comentou Janaína, sem se preocupar em me ofender com o comentário.
- Da próxima vez avisa, pô! A gente ficou precocupado - disse Lavinho, acariciando a minha mão esquerda. Institivamente, eu afastei a minha mão, me arrependo ao ver que Olavo ficara envergonhado.
- Bem, me deculpem se eu sou humana e as vezes preciso de um momento sozinha! Não sabia que precisava da permissão de vocês pra conseguir isso - eu disse, tentando não parecer grosseira.
Olavo e Janaína ficaram em silêncio, e eu pude comer em paz. Devo ter levado menos de dez minutos para tanto, tamanha era a minha fome. Encerrei a minha refeição com um último gole do suco de laranja, e foi nesse mesmo momento que a sirene tocou, e todos no refeitório se levantaram para formar as filas com direção aos dormitórios.
Eu e Janaína nos despedimos de Lavinho, no momento em que as nossas filas se separaram, e eu entrei no dormitório feminino, parando abruptamente na porta do aposento. Eu escutei os gritinhos de reclamação das meninas que estavam atrás de mim mas não dei a miníma, eu não me movi. As garotas atrás de mim me empurravam para poderem entrar, exceto Ína, que permaneceu ao meu lado, preocupada com o meu estado de choque.
- Carol, você tá bem? O que há de errado? Você tá gelada... - comentou ela, ao tocar no meu braço.
Me perguntei se alguém mais sentia o penetrante frio que tomava conta de todo o dormitório. "Ela está aqui!" - eu pensei, com toda a convicção do meu ser, e me apavorei.
- Não foi nada, eu... só fiquei um pouco tonta, acontece - eu disse, tentando acalmar a minha amiga.
- Se quiser eu te levo à enfermaria... - começou Janaína.
- Não, Ína, não é nada, é sério... Não se preocupa - eu disse, acariciando o seu rosto, e pegando na sua mão para continuarmos a andar até as nossas camas, olhando em todas as direções, esperando encontrar Helene em alguma parte do enorme aposento.
Eu vesti a minha camisola curta de alcinha por cima das minhas roupas de baixo, e me deitei, cobrindo o corpo inteiro com o edredom. Janaína ainda parecia preocupada, mas não me perguntou mais nada.
- Boa noite, Ína - eu disse, ficando de costas para ela, tentando evitar qualquer conversa antes de dormir.
- Boa noite - ela disse, indiferente.
Eu queria que Janaína dormisse o mais rápido possível, para que eu pudesse sair do dormitório no meio da noite, e ir ao encontro de Helene. Eu precisava saber o que ela queria de mim. Eu precisava acabar com aquilo de uma vez por todas... o que me atormentava, era não saber como.
Eu fechei os meus olhos com força, sentindo o frio arrepiar cada pêlo do meu corpo. Não intencionava pegar no sono.
...
Eu corria, corria com toda a minha vontade, sentia meu peito e pernas doerem com o esforço, mas eu corria... Corria em meio à uma escuridão sem fim. Não sabia de quem, ou do quê, eu estava fugindo, mas eu fazia isso com toda a minha vontade. Repentinamente, eu cheguei à uma escada, e à alguns degraus abaixo, estava eu, como se tivesse acabado de cair. Como isso era possível?
Eu fiquei encarando aquela figura muito parecida comigo, chorando amedrontada, no fim da escada, como se eu fosse machucá-la. Ainda vislumbrando a minha própria imagem, no alto da escada, fui agarrada por mãos frias como mármore, e senti o meu pescoço ser, violentamente, puxado para trás. Eu olhei fundo no verde penetrante dos olhos de minha caçadora. Helene sorriu deliciada, antes de rasgar a minha garganta com um único golpe de faca...
Eu acordei ofegante, meu corpo e roupa encharcados de suor. Nesse instante, a porta do dormitório fechou-se abruptamente, fazendo um barulho que ecoou por todo o aposento. Eu pude sentir o meu coração tentar escapar do meu peito, com o susto que levara. Ainda um pouco atordoada, me esforcei para ver Janaína na escuridão, e me desesperei ao ver que ela não estava em sua cama. Pensei em Helene, e me dei conta de que o clima no dormitório também mudara, o penetrante frio da morte dera lugar à temperatura ambiente, nem muito fria, nem muito quente.
Eu pulei da cama, e corri em direção à porta do dormitório. Espiando o lado de fora, me deparei com Janaína descendo as escadas para o térreo.
- Janaína!? - eu gritei, sem me preocupar em acordaqr as outras pessoas nos dormitórios.
Ela não respondeu ao meu chamado, e continuou descendo os degraus da escadaria, até sumir de vista. Nesse momento, eu me vi assombrada por imagens de um passado que eu daria tudo para esquecer. Estaria acontecendo tudo de novo? Helene atacara novamente, e desta vez, a vítima escolhida seria a minha melhor amiga? Aquilo precisava acabar, de uma vez por todas. Ela não tinha razão para querer fazer mal algum contra Janaína, a não ser que ela pretendesse me atingir através dela. Decidi não perder mais nenhum segundo me perguntando sobre os planos de Helene, corri em direção à escada, tentando seguir Janaína.
Quando eu cheguei ao térreo, ela já ia muito longe, para além do lobby da escola. Estranhei o fato de a porta principal estar aberta, uma vez que todos os alunos já dormiam, então imaginei que talvez ainda não passasse das onze horas, e que houvessem funcionários cumprindo expediente no Lar.
- JANAÍNA!? - eu gritei mais uma vez, desta vez mais alto, chamando pelo nome da minha melhor amiga, na esperança de que ela me respondesse. Mas ela não respondeu, o que me deu a certeza de que Janaína não comandava mais o seu própio corpo. Atingida pela certeza de que a minha amiga corria grave perigo, eu corri o mais rápido que pude em direção à entrada do colégio. Janaína, por sua vez, também apressou-se.
Cheguei ofegante aos degrais que antecediam a entrada da escola. A única luz que iluminava o pátio frontal do Lar era a da lua, que naquela noite estava minguante, formando um perfeito sorriso no céu, a escuridão parecia, de fato, estar antecedendo algo horripilante. Senti a minha espinha gelar, ao ver que Janaína se precipitara pelo bosque. "Estou caminhando direto para uma armadilha" - pensei, recuando alguns passos nos degraus do lobby. "A sua melhor amiga ainda está lá, e precisa de você". Eu respirei fundo, sentindo o meus pulmões se encherem do gélido ar noturno, e corri em direção ao bosque, sem pensar no que poderia estar me aguardando lá. Eu pisava no chão de terra e folhas secas, sendo guiada pela luz da lua, que penetrava, timidamente, a floresta por entre os galhos das imensas arvores. A escuridão não me permitia ver Janaína, mas eu podia ouvir os seus passos adiante. Ao chegar na igreja, que ficava em uma área mais aberta do bosque, e por isso a luz da lua penetrava com mais intensidade, pude ver Janaína entrando na velha construção. O medo me disse para não dar mais nenhum passo, e voltar para a escola o mais rápido possível, e devo confessar que, por um instante, aquela idéia me pareceu bem tentadora. Mas eu não podia abandonar Janaína. E foi pensando nela que eu tomei coragem para colocar um pé na frente do outro, e continuar caminhando até a igreja.
Eu abri a imensa porta de madeira envelhecida, e entrei. O rangido da porta ecoou gravemente, tamanho era o silêncio do lugar. Em meio à densa escuridão, me esforcei para enxergar o pequeno altar com a imagem de nossa senhora de Aparecida, onde eu sabia que haviam algumas velas,e se eu tivesse sorte; fósforos. Eu dei alguns passos para a direita, e esbarrei no simples altar de madeira, começando a tateá-lo às cegas, encontrando imediatamente um castiçal com uma vela, e para a minha felicidade, uma caixa de fósforos.
Eu acendi a vela de imediato, e vasculhei o lugar com a fraca e amarelada luz que emanava do fogo, procurando por algum sinal de Janaína.
- Janaína!? - eu chamei, sem gritar.
Não houve resposta.
Eu caminhei, cautelosamente, em direção ao altar da igreja, onde havia uma imensa cruz de madeira com a tradicional imagem de Jesus Cristo sobre ela. Foi quando eu ouvi o forte som de algo muito pesado sendo arrastado, cortando violentamente o silêncio, o que me fez virar em direção ao foco do barulho, quase apagando a vela com o movimento brusco que eu fizera. O som viera do confessionário, que ficava atrás de uma cortina vermelho-sangue. A cortina balançara, por efeito do vento, ou porque alguém acabara de movimentá-la. O medo me paralisara. Naquele momento eu desejei não ter entrado na igreja, e até pensei em sair correndo sem olhar para trás, mas era tarde demais, a porta estava muito longe, e algo na escuridão me dizia que seria muito arriscado tentar fugir. Nao vendo outra saida, eu comecei a me mover em direção à cortina que antecedia o confessionário. Eu toquei o tecido plumado da cortina, respirando fundo e abrindo-a, abruptamente. Atrás não havia ninguém, nem nada, além do confessionário. Eu respirei aliviada, e intrigada, ao mesmo tempo. Olhei para trás, procurando pelo menor sinal de vida. Eu já estava recuando, quando olhei para o confessionário uma última vez, e percebi algo muito estranho. De fato, ele havia sido movido, e tal movimento desvendara uma fenda, antes ocultada pelo confessionário. Eu o movi um pouco mais, e aos poucos, uma estreita passagem foi se revelando à minha frente. Eu tampei o nariz ao sentir o desagradável odor que emanava do lugar. Tentei iluminar a passagem secreta com a pouca luz que emanava da chama da vela, mas não servira nem para ter uma noção do tamanho do lugar, que na verdade parecia ser um buraco, pois não havia chão além da passagem, só o breu. Eu ergui a minha visão e me deparei com uma escritura, raspada profundamente na parede acima da passagem, e ao ler a palavra, senti a minha mente ser levada no passado para uma conversa que eu tivera com uma assustada Anita, na biblioteca, e que, até aquele momento, me parecia sem importância. Na conversa, ela me falara sobre um lugar secreto em que Helene e seus dois melhores amigos, Caio e Marcos, costumavam ir durante a noite. O lugar fora descrito por Anita como um "Refúgio" para os três amigos. E não podia ser mera coincidência que a palavra "REFUGIUM" estivesse cravada em uma parede acima de uma passagem oculta, e que parecia não ser visitada por ninguém há anos. Atingida pela repentina descoberta, eu recuei, amedrontada, e ao me virar, me encontrei com o olhar de Janaína, tão próxima de mim que poderia me beijar. Ela sorria, sorria de um jeito que não era comum a ela, mas que me era terrivelmente familiar...
Eu só pude libertar um grito de pavor, antes de ser empurrada para a passagem atrás de mim, sendo tragada pela escuridão em uma curta queda, e perdendo a consciência ao chegar no chão.