sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Capítulo 5 - Helene


A sensação era de que eu estava no período da inquisição, prestes a ser jogada em uma enorme fogueira. A maneira como todos na sala me encaravam me fez congelar na porta. Eu podia escutar Olavo e Janaína falando comigo, me pedindo para entrar de uma vez na sala, mas eu simplesmente não conseguia.
- Bom dia, Amallya - disse a irmã Joana, com sua voz irritante de tão forçadamente gentil. Ela nos ensinava matemática desde a sexta série, e podia ser a pessoa mais doce do mundo, até o momento em que você falar algum palavrão na frente dela, ou mesmo dizer que não tem nada contra o amor entre pessoas do mesmo sexo.
- Bom dia, irmã Joana - respondi, sem olhar diretamente para ela.
- Vejo que dessa vez escolheu se atrasar no primeiro dia de aula, para chamar a atenção da turma - disse ela, aumentando o sorriso em seu rosto a cada palavra que pronunciava.
- Eu... é que...
- Não, querida, por favor, poupe a suas desculpas e as dos seus amigos para a madre superiora, e eu sugiro que sejam desculpas muito criativas dessa vez - disse, sem tirar o seu assustador sorriso da cara uma única vez - Até a próxima aula... Ou não.
A porta da sala quase arrebentou o meu nariz, quando Joana a fechou sem a mesma "gentileza" que apresentava em sua voz e em seu sorriso.
- Freira nazista, filha da puta! - sussurrei ferozmente para a porta.
- Não esquenta, a madre superiora não vai suspender a gente no primeiro dia de aula - disse Olavo, enquanto tirava um cigarro de maconha da sua mochila, e o acendia com o isqueiro dos Power Rangers que estava sempre com ele em seu All Star.
- Vem cá, quantos desse você já fumou hoje? Porque eu acho que isso já tá começando a fuder o seu cérebro, você tá dentro da escola, Olavo! - eu disse, realmente zangada com ele.
- E todas as irmãs estão dando aula, rezando, ou, no caso da madre superiora, fumando o cigarrinho matinal dela. A gente não precisa ir falar com ela agora, relaxa aí!
Nós três começamos a andar em direção ao pátio interior da escola.
- Será que agora você pode começar a explicar pra gente a razão da sua performance de "Carrie a estranha" na estátua do pátio, mais cedo? - perguntou Janaína.
- Do que você tá falando? - peguntei, fracassando completamente em tentar me fazer de desentendida.
- Nossa, acho que nem você se convenceu com essa, agora. Você sabe do que eu tô falando! - insistiu, Janaína.
- É, parecia até que você tava doidona. Não foi isso, né? Olha lá, Carol! Você prometeu que se houvesse uma primeira vez ia ser comigo.
- Ah! Aquilo? Gente, não... não foi nada demais, eu só tava delirando, sei lá, eu não comi nada no café da manhã, tô morrendo de fome, é isso.
- Eu nunca vi ninguém começar a ter visões só porquê não tomou o seu café da manhã - disse Janaína, com um olhar desconfiado.
- Madre superiora! - eu disse, como um alerta, quando vi a figura intimidadora de Amélia, aproximando-se de nós. Em segredo, agradeci pela chegada da madre superiora, que me salvou do desagradável assunto sobre o ocorrido na estátua do espírito santo.
- Porra! - disse Olavo, tossindo com o susto, arremeçando o cigarro de maconha o mais longe possível, e jogando uma bala de menta extra forte na boca.
Amélia atravessava o pátio interno do colégio, de forma distraida e um tanto desconfiada, expressão essa que mudou completamente quando ela finalmente notou a nossa presença. Nesse momento, a sua expressão lembrava mais a de alguém prestes a cometer um triplo homicídio culposo.
- O que vocês estão fazendo fora da sala de aula, feito três almas perdidas? - perguntou ela, denunciando, pelo seu hálito, não ter se livrado da sua famosa mania de fumar um cigarro, sempre que os corredores da escola encontravam-se vazios depois do primeiro toque.
- A gente... se atrasou, madre superiora - eu disse, envergonhada. Janaína parecia estar tentando se esconder atrás de mim, enquanto Olavo evitava o olhar enfurecido de Amélia.
- Que esplêndida maneira de começar um ano letivo. Hum! Claro que... vindo de vocês três, não me surpreende nem um pouco - disse ela, com um olhar de desprezo - Desta vez vocês vão ganhar uma advertência...
- Obrigada, madre - eu disse, sem olhar diretamente para ela.
- E irão ajudar o padre Jonas, com os praparativos para a missa de hoje a noite, depois das aulas - disse, séria.
Eu , Olavo e Janaína suspiramos de raiva, em uníssono. Ela não poderia ter escolhido uma detenção pior do que aquela. O padre Jonas tinha a fama de ser um completo carrasco com todos os alunos que eram mandados para cumprir detenção com ele, além de ter um mal hálito insupórtavel, o que não casava muito bem com a sua péssima mania de falar muito, muito perto mesmo, de forma intimidadora, com os alunos que saiam da linha.
- Vocês poderão entrar para a aula de geográfia com o professor Júlio, no próximo horário - disse ela, já se afastando de nós três - Ah! E a propósito, caso vocês esqueçam de cumprir a detenção, fiquem sabendo que a falta será substituida por uma detenção ainda mais drástica, tão drástica que eu ainda nem pensei nela, mas eu garanto que quando eu começar, serei o mais criativa possível - disse, encerrando a conversa, virando-se bruscamente, e indo em direção ao pátio frontal.
- Ótimo! - disse Janaína, bufando de raiva - Finalmente vamos descobrir se o que falam sobre o lendário hálito do Padre Jonas é mesmo só lenda.
- Ele se aproximou de mim pra me dar um sermão sobre se masturbar, uma vez... Eu juro que não aguentei nem os primeiros dois segundos depois que ele abriu a boca, e comecei a me esforçar pra não chorar na frente dele. Sério, parecia mais que ele havia engolido um animal em decomposição, ou sei lá - disse Olavo, tentando achar o cigarro de maconha que ele havia desperdiçado, quando a madre superiora nos encontrara.
- Vamos sentar de uma vez, eu tô cansada de andar e de levar sermão - disse Janaína.
Nós três nos sentamos em um dos bancos do pátio e dormimos durante meia hora. O toque ensurdecedor da sirene, nos acordou de imediato.
- Obrigada por babar a minha calça, Olavo - eu disse levantando a cabeça de Olavo do meu colo.
- Disponha - disse ele, ainda sonolento.
- Vamo indo, antes que o professor Júlio também fique puto com a gente - disse Janaína, puxando o meu braço.
Durante as duas últimas aulas, antes do intervalo, eu não parei de pensar na garota que eu encontrara na estátua do espírito santo. Procurava desesperadamente por uma explicação para o que eu vira, ou mesmo para o fato de Olavo e Janaína não terem visto a assustadora menina, como eu. O emblema que eu vira estampado em sua roupa não deixava dúvida, a garota já havia estudado no Lar, apesar de que o uniforme que ela usava era bastante diferente do atual modelo. Eu precisava saber se estava ficando louca, precisava saber se, por alguma razão, eu passaria a ver fantasmas pelo resto da minha vida. E só havia um modo de confirmar isso, eu teria que descobrir se aquela garota já havia estudado no Lar, teria que procurar por fotos que confirmassem isso.
Assim que o sinal tocou, eu me levantei da carteira e me retirei da sala o mais rápido que pude, sem nem ao menos falar com Olavo e Janaína, que deveriam estar se perguntando o porquê do meu sumiço repentino. Estava decidida a explicar tudo a eles depois, ou quase tudo, dependendo do que eu descobrisse.
Minutos depois, eu estava em frente à biblioteca no primeiro andar. Se havia um lugar onde eu poderia encontar os anuários das outras turmas antigas do colégio, seria aquele, e para minha sorte, eu era muito amiga de Olívia, a bibliotecária loucona da escola.
- Oi, Liv! - eu disse, quando me aproximei do birô super desorganizado de Olívia.
- Oi, Amallya, feliz por voltar pra escola depois de dois meses de puro tédio? - perguntou Olívia, mostrando que me conhecia muito bem.
- Essa pergunta é pra ser levada a sério? - perguntei.
- Claro que não, foi... só algo que eu perguntei pra dar um rumo à conversa, eu odeio silêncios constrangedores, você sabe.
- Nós duas nunca tivemos esse tipo de problema antes, Olívia.
- Eu sei, por isso que eu te amo, agora deixa eu te dar um abraço - disse Olívia, se levantando para me abraçar forte, como sempre fazia depois de passar muito tempo sem me ver - Agora me diga... o que te trouxe aqui? Além da sua enorme saudade de mim, é claro - disse, voltando a sentar-se, me encarando por cima dos seus enormes óculos vermelhos. Olívia sempre usava seus cabelos castanhos e rebeldes, soltos. Tinha uma preferência por vestidos longos e rodados, daqueles com estampas floridas, e sempre estava calçando sandálias. Nunca perguntei a sua idade, mas ela sempre me pareceu muito jovem, apesar de sua maturidade, sabedoria e das poucas rugas.
- Eu preciso muito de uma coisa, e... eu acho que esse é o lugar certo pra procurar.
- Olha, querida, eu já disse ao seu amiguinho, Otávio...
- Olavo, o nome dele é Olavo...
- Que eu não vendo mais essas coisas, eu só fiz isso uma vez, e foi pra pagar uma dívida da pesada...
- EU... - disse, aumentando o meu tom de voz, com a intenção de que ela começasse a me ouvir - tô procurando pelos anuários da escola.
- O quê? Mas... o quê você iria querer com os anuários da escola?
Não havia pensado em uma justificativa, então improvisei... muito mal.
- Eu queria saber se alguém que eu conheço já estudou aqui, alguém... muito velho - enquanto eu falava, podia perceber a suspeita de Olívia aumentando mais e mais.
- Sei... Bem, a gente guarda os anuários aqui, sim. Não me pergunte o porquê disso, eu sempre achei que esses anuários deveriam ficar na coordenação...
- Em que seção eu posso encontrá-los? - perguntei, ansiosa.
- Vejamos, anuários, anuários - repetia, enquanto estalava os dedos, tentando se lembrar - Ah! Seção de História, sem erro!
- Valeu, Liv - eu disse, apressando-me em direção a seção.
Quando eu filnalmente localizei a seção de história, ao lado da seção de literatura clássica, quase gritei de susto quando percebi uma garota, que poderia ter a minha idade, escorada em uma das estantes da seção, segurando um livro entitulado "Alexandre O Grande - Um homem e suas conquistas". Ela olhou para mim, e enfiou o livro de volta na prateleira, aparentando estar mais assustada do que eu. Achei estranho o fato de ela não estar usando o uniforme da escola, mas sim uma calça jeans, uma blusa cor de rosa e um tennis All Star que poderia ter pertencido à mãe dela. Os seus cabelos eram negros encaracolados, e seus olhos grandes, acastanhados e expressivos. Sua pele era morena como chocolate. Ela me pareceu incrivelmente simpática.
- Me desculpe, eu te assustei? - perguntei, sem graça. Logo a sua expressão passou de assustada para completamente surpresa. Era quase como se ela me enxergasse como algo que não deveria estar ali, falando com ela - Você tá bem? - perguntei, quando percebi que ela estava ficando cada vez mais amedrontada. Sem falar nada, a garota começou a se afastar rapidamente, parecendo falar sozinha, enquanto caminhava para outra seção.
Resolvi ignorar o ocorrido, e o quanto aquela garota me deixara apavorada, e comecei a procurar pelos anuários. Depois de alguns minutos, eu finalmente localizei uma das prateleiras da estante, cheia de livros sem nome algum. Abri um deles, para ter certeza se era o que eu estava procurando. De fato, eram os anuários. Peguei todos que eu pude segurar sozinha, e fui até o birô de Olívia, que olhava, com repulsa, um livro entitulado "O fantasma da meia-noite" de Sidney Sheldon.
- Liv...
- É ridícula a maneira como eles descrevem os fantasmas nesses livros; branquelos, arrastando correntes, gemendo feito retardados...
- É, eu sei, pode acreditar que é ridícula mesmo - respondi, inevitavelmente, me lembrando de Leonardo, e de como ele me parecia perfeitamente vivo quando aparecera no meu quarto, muito diferente dessas versões idiotas dos fantasmas, que costumamos ver em filmes - Liv, será que eu posso levar esses anuários para dar uma olhadinha? Amanhã mesmo eu devolvo.
- Sinto muito, Amallya, mas como você me prometeu a mesma coisa sobre o exemplar de "Noites na taverna", quatro meses atrás, e não cumpriu, eu não posso mais permitir que você alugue livros da biblioteca.
- Qualé, Olívia! Você sabe que eu adoro Noites na taverna, e era meu aniversário.
- Está vendo isso? - disse Olívia, fazendo um gesto com a mão, sobre o próprio rosto - essa é a minha cara de quem não tá nem aí. Se quiser ver estes anuários, terá que fazer isso na biblioteca, querida. Sinto muito, espera... Não, eu não sinto.
- E eu que pensei que você era minha amiga - eu disse, em tom de brincadeira.
- Querida, eu adoraria dizer que a nossa amizade é mais importante pra mim do que o meu salário, mas eu odeio mentir, então... arruma uma mesa, cala essa boca, e olha logo se você conhece alguém nesses anuários, antes de o sinal tocar - ela disse, sorrindo, também em tom de brincadeira.
- Eu te amo, Liv - eu disse, me afastando para poder procurar por uma mesa.
- Eu também, meu anjo - disse ela, jogando o exemplar de "O fantasma da meia noite" no lixeiro ao lado do seu birô - Ah! Querida? - disse ela, tentando me chamar a atenção.
- Oi - eu disse, parando para ouvi-la.
- É impressão minha, ou você... falou com alguém na seção de história, agora a pouco? - perguntou, um tanto preocupada.
- Sim, uma garota muito bizarra. Eu falei com ela, mas ela parecia não querer conversar - eu respondi, tantando falar o mais baixo possível, afinal a tal garota poderia ainda estar na biblioteca. A expressão de Olívia mudara assustadoramente depois da minha resposta, parecia mais uma mãe que acabara de descobrir que a filha menor de idade está grávida -Algum problema? - perguntei, inocentemente.
Olívia demorou a responder, parecia preocupada.
- Não... nada, querida, não foi nada, é... pode ir.
Voltei a procurar um lugar para sentar, achando totalmente estranha a pergunta de Olívia, e mais ainda a sua reação ao ouvir a minha resposta.
Quando me sentei e puz todos os anuários que eu pegara em cima da mesa redonda da biblioteca, me lembrei da garota estranha que eu vira na seção de história, e desejei que ela não aparecesse de novo. Eu procurava no anuário por modelos antigos dos uniformes do colégio. Devo ter folheado três anuários, antes de abrir o da turma do primeiro ano ginasial de 1978. Quase caí para trás ao ver a foto de três alunos muito estranhos, que talvez fossem amigos. Na foto, que parecia ter sido tirada contra a vontade dos três, haviam uma garota incrivelmente pálida, e dois garotos, os três poderiam ter a minha idade, a garota usava exatamente o mesmo modelo de uniforme usado pela garota que eu vira na estátua, mas o que estava me fazendo tremer era o olhar dela na foto, o mesmo olhar que me paralizara na estátua do espírito santo, os mesmos olhos verdes assustadoramente atraentes, e embaixo da foto a seguinte legenda: "Helene, Caio e Marcos. Amigos inseparáveis".