segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Capítulo 7 - Adaptação


Olívia sorria como se tivesse dado a melhor notícia da minha vida.
- Eu não vejo graça nenhuma - eu disse apavorada, enquanto a calma de Olívia me irritava.
- Ninguém tá dizendo que é engraçado, é só... fantástico, é um dom, Amallya, você pode se considerar uma pessoa iluminada... - disse Olívia, parecendo fascinada.
- O que pode haver de tão fantástico em ver gente morta por aí?
- Eu não tô pedindo pra você concordar comigo com relação a isso, mas você precisa aceitar o que você é, Amallya... Você precisa aceitar a sua missão...
- Missão?
- Sim, missão... a nossa missão aqui na terra é ajudar esses espíritos a... a encontrarem a paz...
- Isso... isso tudo é demais pra mim, Olívia. Eu não nasci pra sair por aí brincando de "Caça fantasmas" ...
- Eu sei que é difícil , mas... tentar fugir disso, tentar negar o seu dom... não vai ser uma boa decisão - disse Olívia, parecendo realmente preocupada.
Eu fiquei em silêncio, tentando absorver tudo o que Olívia acabara de me dizer. Eu estava com medo, eu não queria nada daquilo. Mas Olívia tinha razão; tentar fugir não seria a decisão certa.
- Você já viu viu o Léo?
Aquela pergunta me pegara totalmente desprevenida.
- O quê? - perguntei, totalmente surpresa.
- É que... quando eu tinha a sua idade, o primeiro espírito que eu vi foi o da minha avó... alguém que eu amava muito... Então eu pensei que, como o Leonardo foi uma pessoa muito especial pra você, ele seria o primeiro espírito que você veria - disse Olívia, parecendo triste.
- É, foi ele sim... Eu acordei no meio da noite, e ele... simplesmente estava lá... olhando pra mim... Claro que eu quase caí da cama, com o susto - eu disse, me divertindo com a lembrança de Léo me encarando, enquanto eu pensava que estava sonhando, ou ficando louca.
- Isso não acontece por acaso - disse Olívia, escorando-se em seu birô.
- O que você quer dizer?
- Que o Leonardo não apareceu pra você só porque estava com saudade, querida - disse Olívia, em tom de zombação.
- Mas... pra quê ele voltaria? - pensei alto.
- Eu não faço a mínima idéia, assim como talvez ele não faça a mínima idéia... só o tempo dirá - respondeu Olívia, misteriosa.
Ficamos em silêncio por alguns segundos, eu estava completamente distraída tentando pensar em algum motivo que pudesse justificar a "volta" de Leonardo. E essa tal Helene, que razão poderia ter aquela estranha garota para continuar no mundo dos vivos? Foi quando eu tive a idéia de perguntar a Olívia sobre ela.
- Olívia?
- Sim?
- Você já ouviu falar em uma garota chamada Helene? Ela já estudou aqui no colégio há muito tempo atrás...
- Helene? Não me parece familiar, por quê?
Eu relatei a Olívia o ocorrido na estátua do espírito santo, falei sobre Helene, sobre Olavo e Janaína não a terem visto, o que foi o bastante para eu ter deduzido que a garota era na verdade um fantasma, falei sobre a foto que eu encontrara no anuário da turma do primeiro ano de 1978, e por fim, lhe contei sobre a recente aparição de Helene no corredor do primeiro andar, que ocorrera alguns minutos antes.
- Você disse que ela cursou o primeiro ano em 1978? - perguntou Olívia.
- Sim.
Olívia sorriu.
- Eu acho que conheço alguém que pode te ajudar - disse Olívia, esperançosa.
- ANITAAA... - ela gritou para alguém na biblioteca. Me perguntei quem ainda poderia estar ali em uma hora daquelas - EU ACHEI O "HARRY POTTER E A CÂMARA SECRETA", VEM BUSCAR! - disse Olívia, mentindo sobre o exemplar de "Harry Potter e a câmara secreta". Em poucos segundos, Anita, a garota dos olhos assustados, surgiu animada da sessão de literatura clássica. Ela paralizou ao me ver, e eu mesmo estava muito assustada ao ver que ela era a Anita por quem Olívia chamara. Por um instante, pareceu que a garota ia sair correndo.
- Espera, Anita... - começou Olívia, tentando acalmar a garota - Esta é Amallya...
- Prazer...
- Shhh - fez Olívia, repreendendo a minha tentativa de iniciar uma conversa com Anita, e voltando a sua atenção para a garota - Sim... assim como eu, a Amallya também pode te ver... - Os olhos da garota pareciam mais apavorados que o normal, Olívia parecia estar fracassando em sua tentativa de acalma-la - E não... ela não vai te fazer mal... até porque você já está morta - disse Olívia, rindo da própria piada de mau gosto. O olhar de Anita mostrava que ela não havia achado graça nenhuma - Me desculpe, eu... sou um desastre quando tento ser engraçada, de vez em quando - disse Olívia, visivelmente envergonhada - Amallya gostaria de te fazer algumas perguntas, Anita... se não for incomodo.
Anita evitava me olhar diretamente. Na verdade, era mais como se ela tivesse medo de fazer isso, como se eu fosse a própria Medusa da mitologia grega. Me dei conta da idéia de Olívia, e me chamei de burra, mentalmente, por não ter pensado nisso antes. Anita estava em uma das fotos do anuário de 1978, ao lado de Helene.
- Oi... Anita - eu disse, resolvendo esperar por alguma reação dela, antes de partir para o interrogatório.
- Oi - disse ela, quase sem voz.
- É um prazer te conhecer - eu disse, agradecida por ela estar parecendo mais a vontade para falar comigo. Dessa vez ela não respondeu nada - Eu te vi numa foto... no anuário da turma do primeiro ano ginasial de 1978... e nessa foto... você estava ao lado de uma garota... - a expressão dela mudou por completo, de repente ela parecia mais assustada do que nunca.
- Não!... - ela sussurrou como um alerta.
- Você estudou com uma garota chamada Helene, não foi?
A minha pergunta serviu como um gatilho para que Anita correce desesperada pela biblioteca, e sumisse da nossa vista, enquanto gritava "Não" repetidas vezes.
- Eu tentei - lamentou Olívia.
- É... - eu suspirei - Valeu!
- Olha... eu tenho certeza que a Anita pode começar a colaborar, com o tempo, ela é gente boa... Era - disse rindo - Eu a conheço há muito tempo, desde quando comecei a trabalhar aqui, na verdade... Então... aparece aqui mais vezes, tenta conquistar a amizade dela, e eu tenho certeza que ela vai te ajudar a descobrir mais sobre essa Helene.
- É uma boa idéia, vale a pena tentar - eu disse, um tanto desesperançosa.
- Agora se manda daqui, e não vai pro refeitório! Essa hora os alunos já jantaram e devem estar em seus dormitórios...
- É, Olívia, eu sei!... Obrigada - eu disse, enquanto me aproximava de Olívia para lhe dar um beijo de boa noite.
- Boa noite, Carol - disse ela, retribuindo o beijo com um outro na minha buxexa - Não deixa ninguém te ver! Principalmente a bruxa superiora - disse Olívia.
- Pode deixar! - eu disse, não me controlando na risada.
O primeiro andar estava assustadoramente silencioso. Intimamente desejei que Helene não decidisse aparecer ali, não naquele momento. Então, como eu costumo fazer quando estou sozinha em um lugar assustador; comecei a correr feito uma louca, até chegar a escada que me levaria ao segundo andar. Parei ao chegar no penultimo degrau, escutei passos e vozes, que me pareciam perfeitamente familiares. A irmã Joana e o padre Jonas caminhavam pelo corredor dos dormitórios, enquanto conversavam sobre Olívia. Desci alguns degraus, na intenção de me esconder e escutar a conversa.
- Eu não sei que razões a madre superiora possa ter para permitir que essa mulher continue trabalhando nessa escola, imagine o senhor que outro dia eu confisquei a bolsa dela, e descobri que ela estava trazendo um exemplar de... meu Deus...
- Diga de uma vez, Joana! - insistiu o padre Jonas
- Harry Potter - respondeu Joana, dando tapinhas na própria boca, depois de pronunciar o nome de um dos personagens literários que eu mais amo. Logo deduzi que o tal exemplar de Harry Potter que enfurecera Joana poderia ser um presente que Olívia levara para Anita. Achei engraçada a idéia de um fantasma que lê.
- Meu Deus - disse o padre Jonas, fazendo o sinal da cruz.
- Claro que ela desrespeitou a minha autoridade, e não quis me entregar o livro, aquela bibliotecaria atrevida! - disse Joana com um olhar de desdém, e pronunciando a palavra "biliotecária" em tom de ofensa.
- Você contou para a madre superiora?... - perguntou o padre Jonas. E foi a última coisa que eu consegui ouvir nitidamente, pois os dois já se afastavam da escada onde eu me escondia.
Dei uma espiada para saber o quanto eles estavam longe. Esperei eles entrarem na sala dos professores , que ficava no fim do corredor do segundo andar, e corri até o dormitório feminino que estava bem à minha frente, no outro lado do corredor. Dentro do dormitório, fechei a porta bem devagar, para não acordar as garotas, O dormitório era uma sala enorme de teto alto, muitas janelas, onde haviam camas confortáveis e perfeitamente enfileiradas uma ao lado da outra, que ocupavam quase todo o lugar, deixando pouco espaço para caminhar. Eu tinha pouco tempo para trocar de roupa e me jogar na cama, antes que a madre superiora aparecesse para fazer a inspeção noturna no dormitório. Fui até a minha cama, Janaína parecia dormir muito profundamente na cama ao lado da minha. Como estava escuro, não exitei em tirar a minha calça jeans e a blusa do colégio, ficando somente de sutiã e calcinha.
- Amallya? - disse Janaína, ainda sonolenta. Tive que me controlar para não soltar um grito com o susto que levara.
- Que susto, Ína! - eu falei baixinho para não acordar as outras garotas.
- Foi mal, é que... eu ia ficar te esperando acordada, mas você demorou tanto...
- É, eu... eu peguei uma briga com a Barbara...
- Eu sei! Ela entrou aqui, chorando feito uma maluca, dizendo que ia te matar, e tal... Você bateu muito nela? - perguntou Janaína, animada.
- Não, foi só um soco... muito bem dado, é claro - eu falei, me gabando um pouco.
- É, quer dizer... pelo que eu pude ver, ela tava sangrando muito, me surpreendeu ela não ter contado nada pra madre superiora.
- A Barbara não é tão burra a esse ponto. Ela e os seus amiguinhos estavam perambulando pela escola, sem a permissão da madre superiora, com certeza. Então, se ela me dedurasse , eu ia dedurar ela - eu disse, me gabando novamente.
- Você virou minha heroína - disse Ína, rindo baixinho - Ah! Você não apareceu para o jantar, então... - ela tirou uma sacola cheia de batatas fritas, de dentro da sua bolsa.
- Obrigada, Ína - eu agradeci, me dando conta do quanto estava com fome.
- Come logo, que a madre superiora já deve tá vindo fazer a inspeção noturna - alertou Janaína.
Coloquei o meu jantar em cima da cama, e procurei a minha camisola na mala, que durante o intervalo fora tirada da minha sala de aula e posta na minha cama, provavelmente por algum zelador. Com dificuldade, encontrei a peça de roupa, em meio a bagunça em que se encontravam as minhas coisas, e a vesti rapidamente. Sentei na cama, e comecei a comer como se a minha vida dependesse disso. Janaína me observava, sentada na sua cama, com um olhar sonolento.
- Então... você não passou esse tempo todo só dando porrada na Babara... onde mais você foi? - perguntou Janaína, esfregando o rosto para espantar o sono.
Engoli tudo para não falar de boca cheia.
- Eu já disse, eu fui na biblioteca.
- Conversar com a Olívia!? - perguntou Janaína, um tanto desconfiada.
- Sim... Qual o problema?
- Nenhum, é que... de repente você começou a ter assuntos urgentes pra tratar com a Olívia...
- Eu nunca disse que eram assuntos urgentes.
- Mas a maneira como você correu hoje, depois da missa... me pareceu algo muito urgente - disse Janaína, me lançado um olhar desconfiado - Mas eu não tenho nada a ver com a sua vida, não é? Afinal, eu sou apenas a sua melhor amiga...
- Pára com isso, Ína... - eu disse, pulando em cima de Janaína, e beijando o seu rosto várias vezes.
- Não, vai beijar a Olívia, vai... - ela dizia, rindo baixinho para não acordar as outras meninas.
No mesmo instante a porta se abriu, iluminando o dormitório com a luz do corredor. Eu pulei de volta para a minha cama, me cobrindo da cabeça aos pés, com a colcha. A madre superiora passeava pelo dormitório segurando um pequeno castiçal com uma vela acesa, fazendo-a parecer uma freira malvada, tirada de um desses filmes sobre crianças sendo maltratadas em um orfanato. Quando ouvi o som da porta se fechando, e a escuridão envolver o dormitório novamente, eu respirei fundo e me virei para Janaína, que ainda estava acordada.
- Meu Deus, já pensou se ela tivesse visto a gente nesse momento lésbico, em cima da minha cama? - perguntou Janaína, começando a rir.
- Eu sei, acho que ela ia nos expulsar por estar trazendo o demônio pra dentro do colégio, ou coisa do tipo - eu disse, também rindo.
Nós ficamos em silêncio por alguns segundos, ambas esperando o sono chegar.
- Boa noite, Carol - disse Janaína, bocejando e começando a cair no sono.
- Boa noite, Ína - eu disse, aliviada por ela ter esquecido o assunto da minha ida urgente à biblioteca.
Olhando para o teto, pensei sobre o quanto aquele dia havia sido uma loucura para mim, pensei no fantasma que eu deixara no meu quarto, e o medo de não rever Leonardo me tomou novamente. Medo; essa era a definição perfeita do que eu sentia naquele momento, deitada na minha cama, no dormitório escuro e silencioso. Eu imaginava o rosto de Helene na escuridão, sorrindo para mim, da mesma maneira terrível que ela sorrira no corredor do primeiro andar. Eu torcia, inutilmente, para que o sono viesse, para que levasse todas aquelas imagens da minha cabeça, para que eu pudesse me ver livre de todos os meus pensamentos. No outro dia, eu acordara com a sensação de ter encarado o teto do dormitório a noite toda, considerando que eu só consegui dormir, realmente, lá pelas quatro da manhã. De seis horas em ponto, a madre superiora já nos acordava com o seu clichê e insuportável bordão matinal: "Deus ajuda a quem cedo madruga!". "Eu não sei quanto a Deus, mas você me ajudaria muito mais se calasse a porra da boca e me deixasse dormir mais umas três horas, sua bruxa!", pensei, enquanto me levantava da cama feito uma morta-viva . Em filas revesadas de mais ou menos vinte garotas, nós íamos ao banheiro, e tinhamos quinze minutos para escovar os dentes e tomar banho. Depois saíamos todas de toalha para o dormitório, onde trocávamos de roupa, tendo exatos dez minutos para isso, e enfim descermos juntas até o refeitório, que ficava no térreo.
O café da manhã era o primeiro momento do dia em que nós reviamos os meninos, o dormitório masculinos ficava em frente ao nosso, porém, nós descíamos sempre cinco minutos adiantadas. Como sempre eu e Janaína esperávamos por Olavo, na entrada do refeitório. Com excessão de Nievy, o aluno nerd da nossa sala, fanático por RPG e revistas em quadrinhos (vício que eu compartilhava com ele), Olavo não tinha muitas amizades masculinas. Naquele dia, Olavo vinha acompanhado de Nievy, o que não acontecia com frequência, pois o pobre garoto morria de medo de Janaína... O que nos fazia acreditar que ele tinha uma quedinha por ela.
- Então... qual o cardápio de hoje? - perguntou Nievy, empolgado, olhando para Janaína que o ignorou.
- Não faço a mínima idéia - respondi por pura educação.
Nievy ajeitou os óculos, sem jeito, e passou à olhar para vários lugares, tentando disfarçar o gelo que Janaína lhe dera.
- Vamo pegar um lugar, que eu tô morrendo de fome - disse Janaína.
Colocamos nossos livros em cima da primeira mesa vaga que encontramos, e fomos para a fila do refeitório. O cardápio do dia era ovos fritos com pão e café. A cozinheira, dona Sandra, serviu a gente com a cara simpática de quem deseja que você se engasgue com um pedaço de pão, o que não era novidade, se ela começasse a nos servir com um enorme sorriso naquela cara gorda, aí sim eu ficaria surpresa.
Quando voltamos para nossa mesa, me dei conta de que Barbara, que estava com um belo olho roxo e com um curativo sobre a sobrancelha, e sua amigas estavam sentadas bem próximas da gente. A novata, Gabriela, falava com Barbara, enquanto elas olhavam para mim. Decidida a provocar Barbara, eu acenei para ela, sorrindo de forma simpática. Ela respondeu a provocação com um olhar furioso e fazendo um gesto obsceno com o dedo. Fiz cara de magoada, e me sentei, enquanto todos na minha mesa riam da reação dela.
- Você não presta, Amallya! - brincou Janaína, tentando conter o riso.
- E ela também não! Isso nos deixa quites - eu disse, satisfeita.
- Conta tudo! - disse Olavo, empolgado.
- Tudo o quê? - perguntei, meio que já sabendo o que Olavo queria saber.
- Não fode, Amallya! Toda a escola tá sabendo que você e a Barbara saíram na porrada! - continuou, Olavo.
- Ontém no dormitório masculino tava todo mundo falando da "surra que Barbara Regina levou de Amallya Caroline" - disse Nievy, fascinado, e me dando um soco no ombro, sem medir a força - Desculpa - disse ele, envergonhado, depois de perceber que o soco não tinha sido uma boa idéia.
- Bem... Ela me provocou e teve o que mereceu, foi só isso! - eu disse, bancando a falsa modesta.
- Ah, qualé! Eu quero detalhes, teve SANGUE ou foi só uma briguinha de mulher, com puxão de cabelo, gritaria e tal...? - perguntou Olavo.
- Ela me chamou de vaca, eu chamei ela de vadia mau educada, ela me deu um tapa e eu dei um soco no rosto dela, que sangrou pra caramba... e só! - eu disse, novamente me achando.
- Que fooooda, velho! - disse Nievy, exageradamente empolgado.
- É, foi muito foda, agora vamo parar de satisfazer o ego da Amallya e começar a satisfazer os nossos estômagos, que tal? - disse Janaína, bem humorada.
- Ótima idéia - eu disse, rindo, e começando a comer.
- Você dá um soco na cara de Barbara Regina e se torna a Lindsay Lohan da escola, eu não entendo isso! Me ensina qualquer dia desses, tá? - disse Janaína, nunca se casando de me fazer rir.
Depois do café da manhã, fomos todos mandados para a sala de aula, onde teríamos a primeira aula de matemática, e felizmente, a única naquele dia. Uma hora inteira de pura tortura, envolvendo dízimas periódicas e insinuações sobre alunos que andavam "brincando de corda bamba na estreita linha entre o céu e o inferno"; palavras da irmã Joana, e antes do intervalo teríamos mais duas aulas de biologia com o professor Pablo, também padre da escola, e tão enrustido que chegava a dar pena, já dera em cima de Olavo milhares de vezes, e todas as tentativas foram em seu famoso confessionário na igreja da escola. Olavo odiava tocar nesse assunto, mas toda vez que Pablo nos dava aula era impossível para mim e Janaína não começarmos a rir olhando para a cara do nosso amigo, enquanto ele tentava evitar os olhares cheios de insinuação que o professor lançava para ele sempre que tinha a oportunidade.
A segunda aula de biologia foi finalizada pelo toque ensurdecedor da sirene, que sempre me fazia sentir como se estivesse em uma prisão ao invés de uma escola. Eu, Janaína e Olavo nos levantamos rapidamente das carteiras e nos apressamos em direção a porta da sala, quando fomos interrompidos pelo professor Pablo, para a infelicidade de Olavo.
- Não tão depressa, Olavo - disse Pablo, com a sua voz mansa e lenta, que chegava a ser um pouco assustadora.
Eu e Janaína iamos sair da sala, mas o olhar que Olavo nos lançou naquele momento, nos implorava para ficar, e foi o que fizemos.
- Oi, professor... há quanto tempo - disse Olavo, sem graça.
- Pois é, você bem que poderia aparecer na igreja, de vez em quando... pra se confessar, ou mesmo conversar um pouco, seria um prazer para mim - disse Pablo, com todo seu cinismo.
- Eu aposto que sim, senhor - respondeu Olavo, um tanto desafiador.
- Será possível que eu serei obrigado a convocar, novamente, todos os meninos da escola para se confessarem, só para que você me faça uma visita na igreja - disse Pablo, em um falso tom de brincadeira.
- Eu acho que sim, senhor - respondeu Olavo, de maneira firme, o que pareceu ter ofendido o padre Pablo - Não me entenda mal, senhor ... é que... eu ando muito ocupado com os estudos, então... não me sobra tempo pra nada - continuou Olavo, tentando se desculpar.
- Entendo - disse Pablo, visivelmente insatisfeito com a justificativa de Olavo.
- Agora se me der licença, eu preciso comer alguma coisa - disse Olavo, começando a nos empurrar para fora da sala.
- Claro, a gente se vê, hein!? - disse o padre Pablo, animado.
- Espero que não tão cedo! - disse Olavo, já do lado de fora da sala.
- Ele tá tão afim de você, dá uma chance, Olavo... - brincou Janaína.
- Depois de tantos anos de castidade, o padre Pablo deve tá louco por uma noite à sós com o Lavinho...
- PÁRA COM ISSO, POR FAVOR! - gritou Olavo, mostrando-se realmente perturbado pelas nossas brincadeiras - Esse homem é bizarro, vocês... não fazem idéia - disse sério.
- Foi mal, Lavinho... A gente só tava tirando onda... - disse Janaína.
- A gente não sabia que você se incomodava tanto com esse assunto... Desculpa aí, vai!? - eu disse, um tanto envergonhada.
- Esquece isso!... - ele pareceu distante - Eu tô morrendo de fome, vamo comer alguma coisa.
Eu e Janaína nos lançamos olhares preocupados, e seguimos Olavo até o refeitório. Durante o intervalo, Nievy veio novamente se juntar à nós, o que deixava Janaína muito irritada, pois ela, assim como todos na escola, sabia que o pobre garoto sofria de um amor platônico, e Janaína era a causadora disso.
- Oi, gente! Posso me sentar com vocês... de novo? - disse Nievy, sem jeito.
- Claro, Ni... - eu comecei, até ser interrompida por Janaína.
-Vem cá, você não tem nenhuma partida de RPG pra jogar com os seus amigos, ou... sei lá! Qualquer outro lugar pra ir? - disse Janaína, de maneira intencionalmente rude.
- Não que eu saiba - disse Nievy, com a cara no chão.
- Se o Nievy não vai sentar aqui, eu também não sento, Ína - disse Olavo, irritado com a atitude de Janaína.
- Não esquenta, Nievy! Eu tenho certeza que foi só uma brincadeira muito idiota da Ína... - eu disse, enquanto chutava o pé de Janaína por debaixo da mesa.
- Porra, Carol! Essa merda dói - disse Janaína, queixando-se do chute - Senta logo aí, Nievy! Foi só uma "brincadeira muito idiota"! - disse Janaína, contrariada.
- Valeu! - disse Nievy, pondo a bandeja com o seu almoço em cima da mesa e sentando-se, em seguida.
O prato do dia era o meu favorito: Batata frita com bife, arroz e salada. Durante o intervalo conversamos sobre os filmes do Quentin Tarantino que ainda não havíamos assistido, sobre quadrinhos violentos, e sobre a vergonhosa apresentação de A Paixão de Cristo, do no passado, onde a garota que interpretava o diabo esqueceu metade de suas falas. Quando o toque da sirene encerrou o intervalo , Olavo tentava convecer a mim e a Nievy de que o Homem Aranha é "infinitamente melhor" que os X-MEN que, segundo ele: "Não passam de adolescentes super evoluidos, comandados por um molestador de menores em uma cadeira de rodas". Na porta da nossa sala, a madre superiora esperava que todos os alunos do primeiro ano se amontoassem na sua frente.
- O que tá acontecendo? - perguntou Janaína, intrigada.
- Não faço a mínima idéia - respondi, tão intrigada quanto a minha amiga e todos os outros ali.
- ATENÇÃO! - gritou a madre superiora, conseguindo fazer com que todos olhassem para ela, amedrontados, porém muito atenciosos - TODOS OS ALUNOS DO PRIMEIRO ANO GINASIAL, FORMEM UMA FILA DIANTE DE MIM, AGORA! - disse de forma autoritária.
Em segundos, a madre superiora tinha a sua fila de alunos obedientes, perfeitamente formada diante dela, que olhou orgulhosa para o feito - Muito bem... Diante de circuntâncias das quais vocês não precisam ter conhecimento, o professor Júlio não poderá dar a sua aula hoje, por isso eu decidi que esse horário vago será preenchido com o nosso primeiro ensaio para A Paixão de Cristo... Nós iremos agora para o auditório, onde faremos a leitura do roteiro, que já está pronto e será distribuido a todos que fazem parte da peça... A propósito... aqueles que não fazem parte do elenco deveram prestar atenção à leitura do roteiro... ou simplesmente manterem a boca CALADA! Estão todos entendidos? - perguntou a madre superiora, encarando a todos de forma séria e intimidadora - Ótimo!... Agora, EM FILA, todos subam a escada direto para o auditório.
- Que saco! - começou Olavo - Eu não sou popular, não tenho talento e nem muito menos pedi pra fazer parte dessa palhaçada anual, então pra quê diabos resolveram me dar um papel? - questionou Olavo, irritado.
- Talvez eles só estejam te punindo por ter alisado a bunda da professora Joana, no ano passado... - disse Janaína, relembrando um dos nossos clássicos momentos do ano anterior, um ano em que rir era quase uma dádiva para três amigos que haviam perdido alguém muito amado por ambos.
- Eu já disse que eu tava doidão naquele dia, se não eu... nunca... teria... vocês sabem!
- Assediado a professora de matemática!? - eu disse, começando a rir, seguida por Janaína.
- Eu juro que, lá no fundo, eu tô morrendo de rir - disse Olavo, rabugento.
A fila seguia subindo a longa escada em ritmo retardado. Claro que a vontade de todo mundo ali era correr até o auditório e pegar os lugares nos fundos da enorme sala, fora do alcance da madre superiora, que estaria no palco, ocupada com o ensaio, mas Amélia tinha prazer em ver seus alunos marcharem lentamente, como se estivessem caminhando para a forca.
Dentro do auditório, eu e Janaína fomos obrigadas a sentar próximas ao palco, uma vez que todos os outros lugares já estavam ocupados. Olavo nos lançou um olhar desesperado quando a madre superiora o chamou para o palco, onde o resto do elenco já recebia as cópias do roteiro, escrito pela própria Amélia. Barbara não desgrudava da sua nova seguidora, Gabriela, que parecia não dar muita atenção ao que a amiga dizia. A madre superiora mandou que os alunos no palco fizessem um círculo com suas cadeiras, e quando todos encontravam-se sentados com o roteiro em mãos, ela deu início à leitura. O ritmo e o desinteresse de Olavo atrapalhavam os outros membros do elenco, o que parecia não estar agradando nem um pouco a madre superiora. Eu e Janaína riamos baixinho toda vez que o nosso amigo, desastrosamente, lia alguma de suas falas. Lá pela cena da crucificação de Jesus Cristo, Barbara tentou mostrar-se empolgada para a madre superiora, e começou a ler as suas falas de pé, enquanto tentava atuar ao mesmo tempo, claro que Amélia aplaudia empolgadíssima a atuação de Barbara.
- Não... NÃO! MEU FILHO! VOCÊS NÃO PODEM... ELE NÃO É UM CRIMINOSO! - gritava Barbara, olhando para Alexandre, que fingia estar crucificado tão bem quanto a Sabrina Sato é capaz de dizer uma frase inteira sem cometer pelo menos dois erros de português.
- Quem ela pensa que é? A Debora Secco em início de carreira? Ela grita como se tivesse tendo um orgasmo - comentou Janaína, baixinho.
Eu me controlava para não rir alto, quando me vi tomada por uma gélida presença, e eu podia sentir, com cada parte do meu corpo, que alguém, ou algo, havia passado por mim. Eu olhei para trás, institivamente, e não vi nada. Percebendo a minha agitação, Janaína olhou para mim.
- Você tá bem? - perguntou ela, preocupada.
- Não... é que... Não foi nada, eu só... tive um calafrio, foi só isso - eu disse, tentando disfarçar o quanto eu estava assustada.
Janaína voltou a sua atenção para o palco, enquanto eu olhava em todas as direções, tentando descobrir a origem daquela presença. Foi quando eu olhei para o canto esquerdo do palco, e quase caí para trás quando me deparei com a imagem de Helene, que observava, quase como uma estátua, os alunos que estavam no palco. Eu não conseguia desviar o meu olhar dela, percebi algo líquido deslizar pelo meu rosto, eu estava chorando de pavor. Desejei que Janaína não percebesse, porque eu simplesmente não conseguia evitar aquele medo que ia tomando conta de mim.
- PAI, PERDOAI-VOS... ELES NÃO SABEM O QUE FAZEM! - gritou Alexandre, que naquele momento encenava a morte de Jesus.
- PÁÁÁÁÁRAAA! - gritou Gabriela, fazendo com que todos no auditório, inclusive eu, voltassem a atenção para ela que naquele ato da peça não tinha fala alguma.
Ela parecia perturbada, e chorava, assim como eu. Quando a garota percebeu que estava cercada pelos olhares de todos no auditório, ela fechou os olhos com força, e correu para a porta, enxugando as lágrimas no rosto. Assustada, a madre superiora tentou alcançar Gabriela, todos na sala pareciam confusos e perguntavam entre si o que havia contecido. Em meio a confusão, eu olhei novamente para o lugar onde Helene estava, e ela havia sumido, o que não me surpreendeu. Quando percebi que o meu rosto estava ensopado, eu o enxuguei rapidamente com as mãos.
- Mas que porra foi essa? Essa garota só pode ser pirada! - disse Janaína.
Olavo se aproximava de nós.
- Que doidêra, hein!? Será que ela tá bem? - disse Olavo.
Eu não conseguia dizer nada, me perguntava se fora somente uma coincidência o surto de Gabriela e a aparição de Helene.
- Talvez ela seja muito tímida - supôs Janaína.
- Ou então tava doidona... A Barbara e o Jesus Cristo Superstar lá, tavam viajando legal, eu tenho certeza! Talvez ela também tenha entrado na jogada - supôs Olavo.
A madre superiora entrou na sala feito um foguete.
- TODOS PARA A SALA, AGORA! E ESPEREM PELO PRÓXIMO PROFESSOR... EM SILÊNCIO! - gritou Amélia, parecendo nervosa, e saindo do auditório, em seguida.
Todos se apressaram em direção a porta do auditório, e em instantes a enorme sala estava completamente vazia. Na nossa sala de aula não se falava em outra coisa que não fosse "o surto de Gabriela", até mesmo quando o professor Fernando começou a sua aula sobre a tabela periódica, os coxixos sobre o corrido ainda eram audíveis por toda a sala, e assim foi durante as três últimas aulas daquele dia.
Gabriela só foi se juntar à turma no refeitório, onde todos jantavam, e acompanhada da madre superiora, sentou-se em uma mesa solitária, nos fundos do salão. Claro que todos olhavam para ela, seja com curiosidade ou com repulsa, ou com os dois. Durante todo o jantar eu não parei de pensar em Olívia, meu único desejo era correr até a biblioteca e contar a ela, detalhadamente, tudo o que acontecera no auditório. Mas não seria possível, uma vez que a irmã Joana vigiava a todos no refeitório. Com a cabeça lotada de perguntas, eu enfiei a minha cara no travesseiro, depois de ter conversado com Ína por alguns minutos.
Novamente fui dormir pensando na misteriosa Helene, e em como parecia ter virado parte da minha rotina dar de cara com a branquela dos assustadores olhos verdes. Olívia me dissera que a missão de alguém que é um elo, é ajudar espíritos como Helene a encontrarem a paz... Mas alguma coisa me dizia que paz era a última coisa que interessária à Helene. Eu teria que descobrir a razão para Helene ainda não ter alcançado essa tal paz? E se essa fosse a resposta, como eu poderia ajudá-la se não era capaz de nem sequer pensar nela sem ficar apavorada, quanto mais tentar aproximação, e até uma conversa. Eu poderia não ter a resposta para nem uma dessas perguntas, mas de uma coisa eu tinha certeza; eu ainda veria Helene, ou até outros fantasmas, muitas vezes, e para não surtar de vez só me restava uma única saída, como dissera Olívia; eu teria que aceitar o que eu sou, tentar fugir não seria sensato, não teria outra escolha, se não, adaptar-me às frequentes aparições e àos caláfrios que indicavam a proximidade de algo não vivo. Teria que que me adaptar, para não enlouquecer. Chegando a essa conclusão, eu finalmente pegara no sono, sono esse que não duraria muito tempo, pois o mesmo frio que me envolvera no auditório, me fez acordar no meio da noite. Um vulto negro viera acompanhado da tal sensação gélida que tomou conta do meu corpo, eu pude sentir o vento ser cortado por quem quer que tivesse passado na minha frente. E não tive coragem para fazer nada além de me envolver completamente pelo cobertor e novamente chorar de medo. Passados alguns minutos, a total ausência da sensação me fizera ter certeza de que não havia mais ninguém no dormitório, além de mim e das meninas da escola, então eu me deixei envolver pelo sono frágil, para ser novamente despertada, algum tempo depois, mas desta vez eu não fora a única a acordar, e não fora um frio anormal tomando conta do meu corpo que me fizera pular da cama, assim como Janaína, e outras dez meninas ou mais no dormitório, mas sim um grito, um grito tão horrível e intenso que parecia ter tomado todo o colégio, um grito de desespero, que até hoje me vem à cabeça através de pesadelos e flashes de memória aterradores que eu daria qualquer coisa para poder esquecer de uma vez por todas. Claro que ninguém teve coragem de se levantar da cama. Ficamos paradas olhando umas para as outras, e era difícil dizer quem era a mais apavorada de todas nós.
- O que foi isso? - perguntou Janaína, ofegante.
- Um grito - eu respondi, indo em direção à porta do dormitório, seguida pelas outras garotas.
Ao passar pelas camas de Barbara e Gabriela, eu gelei ao perceber que estavam vazias. Lentamente eu abri a porta do dormitório e coloquei a cabeça para fora, dando uma espiada no corredor, a madre superiora vinha correndo em nossa direção, acompanhada pelo padre Jonas.
- Pelo amor de Deus, o que houve? - perguntou o padre Jonas, desesperado.
- Nós ouvimos um grito... - completou a madre superiora.
- SANGUEEEEE! - gritou alguém, de dentro do banheiro feminino.
Fiquem todas aqui! - ordenou a madre superiora, olhando para mim e para as outras garotas que tentavam sair do dormitório, e correndo em direção ao banheiro, o padre Jonas logo atrás.
No outro lado do corredor, os meninos também estavam acordados, Olavo veio em nossa direção, usando um pijama azul bebê, e parecendo muito assustado.
- O que houve? - perguntou, agitado.
- Eu não sei, mas ninguém vai me impedir de descobrir! - eu disse, saindo de dentro do dormitório, claro, seguida por uma multidão de alunos curiosos.
Na entrada do banheiro feminino, eu ouvi mais gritos.
- Sangueee, SANGUEEE, ISSO É SANGUEE! Isso é sangue!... - repetia Gabriela, aos berros, enquanto esperneava nos braços do padre Jonas e da madre superiora, que assim como eu e os outros alunos que conseguiram entar no banheiro, olhavam amedrontados para a poça de sangue que havia na última pia, e que cobria quase todo o chão, o espelho sobre a pia estava quebrado e também banhado em sangue, na parede viam-se marcas de mãos avermelhadas, e o cheiro de sangue dominava todo o lugar. Gabriela, porém, estava perfeitamente limpa, não havia uma única mancha vermelha em seu corpo, ou em sua camisola.
- Calma querida... - dizia a madre superiora, tentando acalmar a garota que chorava e tremia no chão.
- Meu anjo... você pode, em nome de Deus, nos explicar o que houve aqui? - perguntou o padre Jonas, ignorando o estado de choque em que Gabriela se encontrava.
- Bar... Barb... Barbara, Barbara... - repetia Gabriela.
- Barbara... Barbara Regina? Vocês estavam juntas? - perguntou a madre superiora.
Gabriela só balançou a cabeça, indicando que "sim".
- BARBARA!? - gritou a madre superiora - BARBARA REGINA!? -e ela repetiu milhares de vezes, até começar a chorar - Meu Deus... - sussurrava a madre superiora, aos prantos.
Barbara não apareceria naquela noite. Não havia sinal de Barbara Regina em lugar algum em toda a escola.